Audiência pública debate uso medicinal da maconha

O uso medicinal da maconha e seus derivados é benéfico em alguns casos clínicos, mas é controverso e prejudicial em diversos outros. O que impede a ampliação e o desenvolvimento das pesquisas é o poder coercitivo da legislação que criminaliza o uso da cannabis sativa. Em linhas gerais foi esse o resultado da audiência pública realizada no plenarinho da Câmara Municipal do Recife, nesta quinta-feira, 6, promovida pelo vereador Osmar Ricardo (PT). “Esse é um tema espinhoso, complicado, que ninguém quer assumir a responsabilidade. Mas é preciso debatê-lo com tranquilidade porque há teorias dizendo que a maconha ajuda na medicina. O tema tem implicações na saúde pública”, justificou-se. É a segunda vez que ele aborda a questão do uso da erva em audiência pública na Câmara Municipal.

Para falar sobre o uso medicinal da maconha e seus derivados, o professor do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Rodrigo Almeida, que estuda o tema há 15 anos, fez uma pesquisa sobre as evidências científicas, a partir da literatura médica disponível. Ele avaliou estudos sistematizados e disponíveis em universidades, avaliando 745 ensaios clínicos, 21 revisões sistematizadas de estudos, seis avaliações econômicas e seis avaliações de tecnologia e saúde. “Concluí que é possível usar a cannabis sativa com fins medicinais, mas avaliei apenas estudos individualizados em diversos casos do mundo. Eles mostram que há benefícios moderados, com prejuízos, em casos de dores crônicas; benefícios evidentes na esclerose múltipla; significativos para conter náuseas e vômitos causados por quimioterapia; e também foi comprovado em casos de demência”, observou.

Rodrigo Almeida, no entanto, afirmou que é impossível para um pesquisador brasileiro estimar o uso do ponto de vista clínico. “Há dificuldades de se estudar os efeitos benéficos e dizer que a cannabis pode colaborar com a medicina. Como o estado impede o uso, também impede as pesquisas. Como podemos submeter esse estudo a um comitê de ética? Fica-se diante de um conflito com a lei”, alertou. Ele acrescentou que é difícil até fazer diagnósticos, principalmente porque ninguém assume, diante de um médico, que é usuário.  Também presente à audiência o sociólogo e doutor em políticas sobre drogas Marcílio Dantas. Ele realizou pesquisa sobre a literatura relacionada ao uso da maconha, ao longo da história. “Essa planta tem uma longa história que serviu para fins religiosos, econômicos e terapêuticos. Precisamos conhecer a história para entender o atual debate”, disse.

Marcílio Dantas fez o levantamento, durante dois anos, nas bibliotecas da Torre de Belém (Lisboa) e Nacional da França (Paris). No seu estudo, constatou que a cannabis sativa foi trazida para o Brasil por padres jesuítas no século 16. O objetivo era usar as fibras da planta para produzir tecidos “que cobrissem as vergonhas dos nativos. Na missão catequética era importante cobrir os índios”. Ficava caro para a congregação trazer tecidos da Europa, onde a maconha já era usada como cordas em embarcações, na produção de tecidos e de papel. Em meados de 1833, um médico europeu também passou a usar a erva em técnicas homeopáticas e no final do século 19, “medicamentos em forma de cigarro eram trazidos para o Brasil, produzidos por um laboratório farmacêutico da França”. No início do século 20, o médico brasileiro Rodrigues Dória propagou durante congresso, nos Estados Unidos, que a maconha era negativa e prejudicial, segundo Marcílio Dantas. “Esse discurso é o que predominaria até os dias atuais”.


O diretor do Departamento de Narcotráfico da Secretaria de Defesa Social (SDS) alertou que o uso da maconha é ilegal e que a discussão concreta, hoje, deve ser a operacionalizar do uso da maconha para fins de pesquisa. “Como essas pesquisas podem ser efetivadas diante da legislação atual que coloca o uso como crime?”, questionou. Em seguida ele acrescentou que “se as pesquisas forem realizadas, a aquisição da droga para fins medicinais tem que ocorrer de alguma maneira. E a única maneira para se consegui-la, uma vez que é ilegal, é através do tráfico. Essa é a questão”, disse. Ele ressaltou que a permissão do uso esbarra numa preocupação: “o estado brasileiro vai mudar a legislação para permitir a aquisição?”.

O assunto precisa ser debatido com profundidade, segundo o coordenador da ONG Se Liga, Gilberto Borges, que trabalha com usuários e ex-usuários de álcool e outras drogas. “Esse é um campo vasto para ser debatido. Mas é preciso discutir a descriminalização da maconha. Existe até uma pesquisa da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), realizada pelo professor Dartier Xavier, em 2010, com 100 usuários de crack. A pesquisa comprovou que mais da metade deixou de usar o crack quando trocou essa droga pela maconha. E no complemento da pesquisa, os que fizeram essa passagem do crack para a erva, também terminaram deixando de usar todo tipo de droga posteriormente”, afirmou.

A coordenadora da Marcha da Maconha em Pernambuco, Ingrid Farias, criticou a política de repressão a drogas no Brasil, que criminaliza o usuário e impede as pesquisas científicas. “Essa política sempre foi usada, mas até hoje não existe comprovação de que os índices de combate ao tráfico diminuíram no Brasil. Então, ela é discutível. Também não se pode fazer uma condenação generalizada. O usuário não é traficante. Esse, sim, é o negativo para a sociedade, o violento”, afirmou. Além disso, Ingrid Farias ressaltou que a maconha só é discriminada porque não interessa ao grandes laboratórios farmacêuticos. “Os laboratórios comercializam drogas pesadas. Mas, no caso da maconha, discrimina”, alertou.


Em 06.06.2013, às 13h05.