Câmara do Recife homenageia a advogada Mércia Albuquerque

Uma mulher formada na Faculdade de Direito do Recife, em 1961, que durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985) defendeu centenas de presos políticos. Uma atuação considerada corajosa e incansável. Mércia Albuquerque faleceu no ano de 2003, mas o seu trabalho em prol dos direitos humanos vem marcando gerações. Na noite desta segunda-feira (1º), ela foi homenageada na Câmara Municipal do Recife durante solenidade realizada por iniciativa da vereadora Liana Cirne (PT).

Presidida pelo vereador Zé Neto (PROS), a mesa de honra da solenidade também foi composta pela vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB/PE), Ingrid Zanella; pela fundadora do Movimento Tortura Nunca Mais de Pernambuco, Amparo Araújo;  pelo jornalista e ex-preso político, Marcelo Mário de Melo; pela conselheira Federal da OAB e assessora da  Controladoria-Geral da União (CGU), Yanne Telles; pelo coordenador do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, Roberto Monte; pelo ex-vereador e ex-deputado federal Fernando Ferro; e pelo reitor da Universidade Católica de Pernambuco, padre Pedro Rubens. Durante a solenidade foram exibidos dois vídeos, um que narrou a história de Mércia Albuquerque e outro, com depoimentos de pessoas que foram marcadas pela ditadura militar.

Antes de iniciar o seu discurso na tribuna, a autora da homenagem, vereadora Liana Cirne, pediu que os estudantes presentes se levantassem e, em salva de palmas, destacou a importância deles na sociedade. “Vocês são a razão de nós estarmos aqui. A memória e a história precisam ser contadas para quem não as viveu”. Em seguida, ela pediu que as pessoas que resistiram e lutaram contra a ditadura militar também se levantassem. “Uma salva de palmas adequada a todo mundo que enfrentou a ditadura. Graças a luta de vocês estamos em um país em que nós podemos votar para eleger nossos representantes”, salientou. 

Segundo Liana Cirne, no dia 2 de abril de 1964, a advogada Mércia Albuquerque estava na Praça de Casa Forte, Zona Norte do Recife, no horário do almoço, quando viu o líder político Gregório Bezerra ser torturado em praça pública. "As crianças estavam saindo da escola e viram a cena de Gregório Bezerra sendo brutalmente torturado, amarrado em um jeep e sendo arrastado pelas ruas de Casa Forte, com ácido queimando os seus pés e levando coronhada de fuzil. Tudo isso em praça pública. Mércia assistiu a essa cena, ali se tornou advogada de Gregório Bezerra e não parou. Foram mais de 600 presos políticos para quem ela advogou. Ela foi presa diversas vezes por realizar uma atividade profundamente perigosa, uma atividade quase terrorista: o exercício da advocacia para presos políticos. Era esse o motivo para ela ser presa", contou. 

Liana Cirne salientou a importância de a Câmara do Recife homenagear Mércia Albuquerque pela sua história de vida e de luta. "Vir para esta Câmara resgatar a memória desta mulher de fibra, de coragem, uma das tantas heroínas que resistiu à ditadura, é fundamental. As novas gerações têm que saber a diferença entre verdade e mentira. A democracia não permite a defesa da ditadura, é sem anistia para os golpistas", afirmou. "Talvez, de 1984 para cá, nunca tenha sido tão necessário estarmos aqui, porque nunca foi tão perigosa a narrativa de que não houve golpe. Estão confundindo fatos com opiniões sobre a memória da nossa história. Há só uma verdade, a de que no dia 1º de abril de 1964 vivemos uma ditadura civil-militar extremamente violenta. Poucas pessoas falam das mortes que aconteceram no próprio 1º de abril no interior do Estado. Estima-se que dois mil campesinos foram assassinados em um único dia. Todas as associações de trabalhadores rurais foram perseguidas, porque era preciso conter a ideia de uma reforma agrária". 

Em seguida, a fundadora do Movimento Tortura Nunca Mais de Pernambuco, Amparo Araújo contou que a primeira vez que teve contato com Mércia Albuquerque foi em 1977, quando veio para o Recife. "Eu era militante da ALN [Ação Libertadora Nacional], ainda clandestino, mas já não existia mais. Só tinham três militantes da ALN no Rio de Janeiro, e ficamos sem saber o que fazer porque soubemos que estávamos sendo procurados. Então, procuramos o advogado militante Modesto da Silveira, e a solução que ele encontrou foi que voltássemos para as nossas famílias. Fui para Alagoas e, depois, vim para o Recife. E em 1977 saiu uma edição no jornal com a lista dos desaparecidos políticos, e lá estava o nome do meu irmão e o meu. Eu fiquei apavorada porque estava viva - o meu irmão estava morto - e eles podiam usar esses dados para desmoralizar as famílias. Quando vim para cá, Modesto me deu o nome de três advogados, procurei Dom Hélder Câmara, e ele me citou Mércia, foi quando eu fui procurá-la. Eu estava completamente vulnerável porque não tinha ninguém aqui em Recife. Cheguei no escritório dela e ela achou muito esquisito, porque muita gente tentava se infiltrar para prejudicá-la", disse. 

Depois desse encontro no escritório de Mércia Albuquerque, Amparo relatou que a encontrou apenas anos depois. "Foi quando ela era ouvidora da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos. O Roberto Franca era o secretário e, ela, ouvidora. Ela ajudou demais em 1995. Fez muitas ouvidas, ajudou as famílias dos companheiros mortos desaparecidos a receberem a indenização e o registro da memória. Mércia ajudou muito nesse processo e eu ficava perto dela. E eu fiquei emocionada quando Roberto Monte, o guardião do acervo de Mércia resolveu organizar essa publicação, e estamos hoje aqui a reverenciando, porque é isso o que a gente tem que fazer. Temos que honrar essas pessoas que lutaram, que correram risco", detalhou.

Após as palavras de Amparo Araújo, foi exibido um vídeo com depoimentos de personalidades que foram marcadas pela ditadura militar. Logo após, Marcelo Mário Melo, ex-preso político, recitou dois poemas. “É muito importante que um povo não feche os olhos ao seu passado, como motorista na estrada não fecha os olhos ao retrovisor. E de modo igual, e diferente, também é importante para o presidente. Ditadura nunca mais nem os seus restos mortais (...) Que os tempos do horror sejam sempre bem lembrados para não serem tomados como coisa positiva, mas receita negativa que não sara as feridas. Vidas desaparecidas exigindo explicação”.

Roberto Monte, coordenador do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, dirigiu-se à tribuna e recordou vários fatos, dentre eles o filme e livro chamado Zé, do jornalista Samarone Lima. “O jornalista Samarone Lima, uma das 'crias de Mércia', foi para Belo Horizonte e fez uma série de entrevistas. E, a partir dali, começou a construir o seu livro: Zé. No ano passado, transformou-se em um filme. A trama conta a história real de Zé (Caio Horowicz) e Lena (Eduarda Fernandes), que se casam justamente quando sua militância na Ação Popular, organização que resistia à ditadura militar brasileira, os obriga à clandestinidade”. 

Monte também afirmou que será aberto um Memorial. “Estamos abrindo um Memorial em que vai entrar os diários, o acervo jurídico, as 750 cartas e os recortes de jornais. Temos inúmeras caixas porque Mércia era muito aficcionada na figura de Gregório Bezerra e ela tinha tudo dele quando aparecia em jornal. Está tudo organizado. Vamos ter também o ABC dos reprimidos e o ABC dos familiares. Viva Mércia e viva os Mércios porque existem aqui, em Pernambuco, outros advogados que estão na mesma direção”.

Clique aqui e assista a matéria do TV Câmara do Recife.

Em 01.04.2024