Liana Cirne debate o direito à memória e à verdade em data simbólica

No dia em que se completou 57 anos do golpe militar de 1964, a vereadora Liana Cirne (PT) realizou reunião pública virtual na manhã desta quarta-feira (31) para marcar a data. O encontro tratou sobre “O direito à memória e verdade no Recife, à luz do relatório final da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara”. A documentação obtida por essa comissão esclarece e tornam públicas as violações dos direitos humanos durante a ditadura.

 “Quando convocamos esta reunião pública não imaginávamos que ela se realizaria num contexto político tão delicado. Quando hoje debatemos o direto à memória e à verdade, incorporamos novos elementos diante do que vem ocorrendo no Governo Federal. Por isso, rememorar o 31 de março, quando ainda tentamos entender o Bolsonarismo, nos exigem reflexões específicas”, disse a vereadora. Ela fez um resgate da história e  lembrou que, por meio do golpe de 1964 iniciou-se um período de 21 anos (até 1985) de graves violações de direitos humanos, mortes, torturas e desaparecimentos que foram comprovadas pelas comissões da memória e da verdade (nacional e estadual).

Essas comissões da verdade, no entanto, só passaram a existir quase 30 anos depois do final da ditadura militar, quando o PT esteve na condução do Governo Federal. Liana Cirne ressaltou que a Comissão Nacional da Verdade registra que a ditadura civil-militar “é responsável por 434 mortes e desaparecimentos; e que ao menos 8.350 indígenas foram torturados e assassinados desde o 1946 até 1988”.

Estiveram presentes na reunião pública as vereadoras Dani Portela (PSol) e Cida Pedrosa (PCdoB), deputada Tereza Leitão, militantes de direitos humanos, e diversos grupos políticos ligados à esquerda. A reunião foi aberta com o poeta e ex-preso político Marcelo Mário Melo, que declamou um poema fazendo referência à esperança. Ele também lembrou que no dia 1º de abril de 1964 era estudante e protestava no centro do Recife, contra o golpe dado no dia anterior, quando seus amigos Jonas Barros e Ivan Aguiar foram metralhados e mortos.

Liana Cirne ressaltou que o povo pernambucano foi  dos mais perseguidos pela ditadura civil-militar por seu histórico libertário, berço das Ligas Camponesas, de lutas pela Democracia e pela resistência ao golpe. “Por isso, acreditamos que, neste período de tensionamento que vivemos, é imprescindível retomar por Recife as discussões sobre a Memória e a Verdade”, disse. A mesa de debates foi formada pelo deputado federal Nilmário de Miranda, ex-secretário de Direitos Humanos do governo Lula; a professora Eneá de Stutz e Almeida, ex- conselheira da Comissão da Anistia;  o professor Michael Zaidan, que coordena o Núcleo de Estudos Eleitorais, partidários e da Democracia, da UFPE; a fundadora da ONG Tortura Nunca Mais, Amparo Araújo, membro da Comissão da Verdade; a advogada Rose Michele Rodrigues, membro do Comitê Memória da Verdade e da Justiça de Pernambuco; o sociólogo Edvald Nunes Cajá, último preso político da ditadura libertado depois da Lei da Anistia e o ex-secretário Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e ex-presidente da Comissão de Anistia do Brasil,  Paulo Abrão Pires Junior.

Em sua participação na reunião pública, a vereadora Dani Portela contou que é filha adotiva de um ex-preso político anistiado, hoje falecido. “Quando foi preso e torturado, ele ficou estéril . Dessa forma, fui adotada. Cresci num ambiente em que a defesa da democracia sempre esteve presente”. O pai dela, numa das vezes que foi preso e levado para o Rio de Janeiro, conheceu o coronel Brilhante Ustra. “O lugar desse homem é o lixo da história. Mas, ao contrário, hoje é homenageado pelo Governo Federal”, lamentou. Ela puxou “um fora Bolsonaro” e pontuou que “devemos começar a construir  o ano de 2022 neste 31 de março”.

 A vereadora Cida Pedrosa falou em seguida. Ela ressaltou que, mais do que nunca, é importante se reunir para lembrar o 31 de março. “Este é um ato de vigília pela democracia”. Ela lamentou que, no atual momento, há um registro de mais de 150 casos de censura à imprensa, prova do autoritarismo.  “Somos vítimas de uma desconstrução da democracia, por parte de Bolsonaro. O ponto alto foi a tentativa de autogolpe, que ele tentou dar de ontem para hoje. Precisamos vigiar, para termos condições de contar a história pelo olhar dos que lutaram pela redemocratização”.

O deputado Nilmário de Miranda disse que a Comissão da Verdade foi essencial no resgate da história, porque caso contrário “muitos fatos e nomes estariam hoje numa espécie de poeira cósmica”. Ele lembrou que a ditadura se nutre por versões “falsas, mentirosas e enganosas, que muitas vezes se perpetuam porque viram a versão oficial”. Nilmário MIranda homenageou dois pernambucanos vítimas do autoritarismo: o ex-deputado Gregório Bezerra, torturado e arrastado pelas ruas do Recife; e o ex-presidente Lula, que passou 588 dias presos, com acusações sem provas.

Membro da Comissão de Verdade de Pernambuco, Maria do Amparo Araújo lembrou sua caminhada política. Ela é irmã de preso político e viúva de um desaparecido. “Não podemos pensar em ditadura como coisa do passado. Hoje, precisamos pensar em estratégia de luta e resistência contra o autortarismo. É preciso pensar como vamos sair dessa situação em que estamos, para  impedir que Bolsonaro se reeleja no ano que vem”. A professora Eneá de Stutz e Almeida, ex-conselheira da Comissão da Anistia, protestou contra a Ordem do Dia, documento público e oficial do Ministério da Defesa, lido no dia 31 de março do ano passado e de hoje. Ambas dizem que há 57 anos “ocorreu uma revolução”.

“O que houve em 1964 foi um golpe de estado e esta é a versão oficial do estado brasileiro. É a narrativa que combina com a verdade objetiva dos fatos. O eu houve não foi movimento ou revolução, mas gole. E o que se seguiu foi um período de ditadura”. O historiador Michael Zaidan disse, após Eneá, que “nossa tarefa é recolher os cacos da história. É uma tarefa delicada, dolorosa, pois muitas vidas foram danificadas e interrompidas”. Zaidan fez uma diferenciação: “Revolução é um processo profundo; golpe é uma intervenção extraordinária no curso da história. Foi o que houve”

A advogada Rose Michele Rodrigues fez uma leitura da ditadura através da transversalidade de gênero. “As mulheres, como Ranúzia Alves, sofreram duplamente; pela questão política, anticomunista e antidemocrática. E também pela questão de gênero numa sociedade ainda mais machista”. Ela trouxe à memória o nome de diversas mulheres que foram guerrilheiras.

O ex-preso político, Edvald Nunes Cajá, falou “da experiência macabra que foram os cárceres e as câmara s de tortura de 1964”. Para ele, “essa historia ninguém poderá apagar”. Ao contrário dos dados da Comissão da Verdade, ele relatou a ditadura “deixou mais de dez mil vítimas” e o Brasil regrediu, durante a ditadura, “ 50 anos na economia e no desenvolvimento social ”.  Ele também criticou a leitura da Ordem do Dia e disse que ela se constituiu “uma agressão à Constituição”.

A advogada Vera Baroni, fundadora de Grupo de Mulheres Negras e coordenadora do Grupo de Enfrentamento ao Racismo falou da importância política do atual momento. “Precisamos incorporar nossa luta de memória e de verdade no dia a dia do povo brasileiro”.

O ex-presidente da Comissão de Anistia do Brasil, Paulo Abrão, pontuou fatos que marcaram a história brasileira desde o golpe militar de 1964, seguido pela anistia política;regularização dos partidos políticos; a volta dos exilados; o processo de redemocratização; as eleições diretas; o governo Sarney que desfez o SNI; o governo Collor que mandou abrir os arquivos da ditadura militar; o governo Fernando Henrique que criou a Comissão da Anistia, Mortos e Desaparecidos. “O governo Lula adotou as políticas de reparação e avançou nessa agenda; já o governo Dilma, instalou a Comissão Nacional da Verdade e deu início às políticas públicas da memória”. Paulo Abrão entende que “pela primeira vez, estamos diante de um governo que rompe os compromissos da transição democrática. E isso é muito sério”. Para ele, 2021 deve ser o ano da memória, com o objetivo de mantê-la viva até 2022.


Em 31.03.2021.