Audiência trata de ordem de despejo na comunidade Sítio Santa Francisca

São cerca de 200 famílias que podem ficar sem moradia em meio à pandemia de covid-19. No dia 4 de maio, será executada uma ordem de despejo contra pessoas que residem na comunidade Sítio Santa Francisca, no Ibura, nas proximidades de uma linha ferroviária. Para tratar do tema e cobrar ações da Prefeitura do Recife e do Governo do Estado, a Câmara Municipal promoveu uma audiência pública virtual na tarde desta quinta-feira (22). A iniciativa do evento partiu da vereadora Dani Portela (PSOL) e do vereador Ivan Moraes (PSOL).

A comunidade se estabeleceu no local nos anos 1980 e faz parte de um conjunto maior, denominado Comunidade da Linha. O processo contra os moradores tramita desde 2011 na Justiça e é movido pela empresa Transnordestina, que detém a concessão da Malha Nordeste da Rede Ferroviária Federal.

Ivan Moraes abriu a audiência explicando os seus objetivos. “A audiência pública é um momento da democracia direta. É um momento em que as pessoas, através do Poder Legislativo, podem se posicionar e demandar seus direitos. Em toda audiência pública promovida pelo Poder Legislativo Municipal, a Prefeitura é convocada, tendo a obrigação de prestar os devidos negritamentos e se implicar na situação das pessoas”.

O parlamentar se dirigiu ao Governo do Estado e, em especial, à Prefeitura do Recife para saber o quanto o Executivo se envolveu até agora no caso. Moraes perguntou se já houve diálogos com a Transnordestina e com órgãos como o DNIT e a Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União (SPU), que cuida dos imóveis de propriedade da União – e qual foi o resultado desses diálogos. Questionou sobre o andamento de uma regulação específica da Prefeitura para a comunidade, que se encontra, ainda, dentro da área do Projeto Especial do Parque Tejipió e da Zona Especial do Aeroporto – situação que, segundo a legislação, prevê ações de reassentamento. E buscou informações sobre os planos da Prefeitura tanto para evitar a remoção como para mitigar seus efeitos, caso ela aconteça. “São diversas questões que envolvem o seguinte: Governo, Prefeitura, o que vocês estão fazendo?”

Dani Portela contextualizou o embate pela posse da área. “Para quem não conhece, o Sítio Santa Francisca é uma comunidade que tem 30 anos. Ela está passando por um conflito fundiário com a empresa Transnordestina Logística. A ameaça de despejo da comunidade vem de uma obra que foi iniciada pelo Governo Federal. Com isso, cerca de 200 famílias estão ameaçadas de perder a moradia durante a pandemia, sem perspectiva nenhuma, até agora, de recebimento de indenização ou qualquer suporte da gestão, seja municipal, seja estadual.

A vereadora fez questão de mencionar que, se feito durante pandemia, o despejo se torna ainda mais grave. “Essa ameaça está situada em um contexto nacional. Estamos vivendo um período de crise sanitária que traz consequências econômicas e sociais profundas”.

Representante do mandato coletivo Juntas, a codeputada estadual Jô Cavalcanti (PSOL) enfatizou a necessidade de não haver despejos durante a pandemia de covid-19. Ela mencionou a recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no sentido de evitar despejos coletivos de vulneráveis enquanto persistir a pandemia. “Desde março do ano passado, estamos com  um projeto de lei na Assembleia Legislativa, que tem como objetivo o despejo zero e que vai começara tramitar para proteger as pessoas que se encontram em situação de insegurança de posse de suas moradias. Entristece muito que, enquanto o CNJ tem essa recomendação de despejo zero, essas famílias enfrentem esse terror e a Prefeitura se exima de sua responsabilidade. É nosso dever estar junto dessas mulheres e homens que correm o risco de perder suas casas”.

Vídeo e pesquisa – Um vídeo com depoimentos dos moradores foi exibido durante a audiência. E uma pesquisa social feita com as pessoas que podem ser afetadas pelo despejo foi apresentada pelo urbanistas Luan Melo, do Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH) e Bruno Fonseca, da Cooperativa Arquitetura, Urbanismo e Sociedade (CAUS).

Melo salientou que, por também estarem situados numa zona de ambiente natural, a comunidade precisa ser alvo de um projeto de moradia específico por parte da Prefeitura. “No mapeamento, conseguimos identificar que o Sítio Santa Francisca está no que seria o Parque Tejipió, um projeto especial. O artigo 138 do Plano Diretor estabelece que, para a implementação de projetos especiais, deverão ser elaborados projetos urbanos específicos de modo a atender alguns objetivos. Um deles é o reassentamento de famílias ocupantes de áreas de preservação ambiental ou de risco”.

Já Fonseca detalhou os dados colhidos junto à comunidade em relação à sua situação socioeconômica. Ele explicou que existem divergências a respeito da metragem que deve ser reservada ao longo de cada lado da linha férrea – ainda não se sabe se serão afetadas as famílias com casas em até seis, 15, ou 21 metros das margens. Tendo isso em vista, o estudo elaborou três cenários diferentes, concluindo que entre 542 e 734 pessoas poderão ser removidas do lugar. O urbanista chamou a atenção para as quantidades de crianças na primeiríssima infância que serão afetadas, entre 43 e 54 indivíduos na faixa entre zero e três anos, e de idosos, entre 20 e 34 indivíduos.

A fragilidade socioeconômica, agravada durante a pandemia, foi outro fator destacado pelo urbanista. Ele lembrou que, se houver reassentamento, a situação econômica das famílias pode piorar, uma vez que 43% utilizam o transporte a pé ou bicicleta para trabalhar. “Até 75% das famílias [afetadas] recebem até R$ 1100. Na faixa dos 21 metros, temos um total de 30 famílias com renda familiar entre zero e R$ 250, 20 famílias recebendo entre R$ 250 e R$ 500, e outras 20 recebendo entre R$ 500 e R$ 750, demonstrando a vulnerabilidade econômica, além da escolar. Apenas 12% das pessoas responsáveis pela família que disseram exercer atividade econômica remunerada trabalham com carteira assinada, enquanto 42% se encontram desempregados ou sem atividade remunerada”.

Moradores em risco – Dois moradores da comunidade deixaram seu depoimento durante a audiência. Uma das habitantes mais antigas do lugar, Terezinha Jesus também foi uma das primeiras a se engajar contra o despejo, em 2011. “Eu moro aqui há mais de 27 anos. Tenho muitos problemas com esse processo que se arrasta há muitos anos. Lutei muito para abrir estas ruas. Peço encarecidamente que a Prefeitura e o Governo do Estado se prontifiquem, façam a sua parte. Todos precisam de uma moradia”.

Já Denilson Lopes contou que o local já faz parte da história de sua família. “Temos uma vida aqui que deve ser reconhecida. Estou aqui há 20 anos. A gente se sentiu abandonado pelo Poder Público, mas estamos confiantes de que isso vai mudar. Sou pai de três filhas e uma delas só sabe o que é isto aqui. A comunidade está tensa. Estamos na expectativa”.

Apoio jurídico – Representantes da Defensoria Pública da União (DPU), do Ministério Público Federal (MPF) e da seccional pernambucana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/PE) também se pronunciaram durante a audiência.

O defensor público da União André Carneiro Leão disse que a órgão acompanha o caso desde 2011. Ele lembrou que, com a opção pelo modelo rodoviário, as ferrovias federais foram sucateadas. No caso da malha do Nordeste, o uso da estrutura foi concedido à empresa Transnordestina. “Mas a empresa abandona as ferrovias. A ocupação [da Comunidade da Linha] acontece há mais de 30 anos e ela vai atribuir função social a esse espaço. Apesar de todo o tempo em que a comunidade reside no local, em 2011 um escritório de advocacia é contratado pela Transnordestina, com o receio de que houvesse a caducidade do contrato de concessão. O escritório começa a ajuizar essas ações de reintegração de posse sem conversar com a comunidade, sem conversar com o Poder Público para buscar soluções alternativas”.

Segundo o defensor, mesmo tendo sido produzidas provas periciais de que a ferrovia estava abandonada, a Justiça deu ganho de causa à empresa. No entanto, a DPU, que já solicitou uma suspensão da reintegração uma vez – o despejo aconteceria em março, inicialmente –, vai pedir novamente que ele seja suspenso enquanto durar a pandemia.

Representando o MPF, o servidor assistente da procuradora da República Carolina Furtado, Felipe Araújo, afirmou que o órgão também se posicionou contra o despejo durante a crise sanitária. “A procuradora regional dos Direitos do Cidadão está ciente do assunto e da relevância do tema. Numa ação judicial que tramita na 5ª Vara e que está em cumprimento de sentença, foi formulado um requerimento de suspensão por tempo indeterminado dessa reintegração de posse, em razão do agravamento da pandemia. E, também, houve um requerimento para que, em eventual caso de expedição de mandado de reintegração de posse, seja possibilitada manifestação prévia às partes, bem como do Ministério Público, para que seja analisada o cabimento ou não dessa providência”.

Presidente da Comissão da Advocacia Popular da OAB/PE, Renan Castro considerou que o despejo contraria direitos fundamentais. Ele disse que a vai solicitar que a OAB entre na causa como “amigo da corte”, uma espécie de participante do processo que fornece informações e argumentos para o julgamento. “A nosso ver, a decisão que entendeu por esse despejo viola a Constituição e diversos tratados de Direitos Humanos que equalizam o direito à moradia como um direito fundamental. Há entendimentos divergentes sobre o direito à moradia e o direito à propriedade da União aos trilhos do trem. Esses problemas são provenientes do abandono. Será que não seria mais inteligente fazer um outro traçado, que não precisasse remover famílias que estão desde a década de 1980 naquela área?”

Prefeitura do Recife e Governo do Estado – Chefe do gabinete de Projetos Especiais da Secretaria Municipal de Política Urbana de Licenciamento, Otávio Calumby disse que vai responder aos questionamentos feitos na audiência por escrito, por envolverem diversos setores da Prefeitura. “Quero registrar a solidariedade da Prefeitura ao que tem acontecido na comunidade. Temos plena ciência do quanto um processo de conflito fundiário afeta a vida de todo mundo dentro da comunidade. Uma articulação precisa ser realizada com a SPU. A construção de uma solução passa por isso e por medidas judiciais. O município está atento e participando”.

Já a gerente de projetos sociais da Companhia Estadual de Habitação e Obras (CEHAB), Carolina Siqueira, informou que o órgão ainda não foi acionado sobre o assunto, mas que está disposto a contribuir. “Aqui na gerência, nós não temos nenhum cadastro dessa comunidade. Ela não é acompanhada pelo Governo do Estado. Hoje, não tem nenhum tipo de intervenção na área e, também, não estamos participando desse processo de reintegração de posse. Mas isso não significa que não podemos fazer nenhum tipo de parceria com a Prefeitura. Estamos à disposição”.

Encaminhamentos – Ao final da audiência, a vereadora Dani Portela estabeleceu alguns encaminhamentos que devem ser observados nas próximas semanas. Dentre eles, está a cobrança pelo início de diálogos entre a Prefeitura e a Transnordestina, bem como o ingresso do Executivo municipal no processo para solicitar o adiamento da ordem de despejo durante a pandemia. Além disso, Governo do Estado, Prefeitura e vereadores devem se reunir na próxima semana para debater as respostas aos questionamentos feitos durante o evento.

Em 22.04.2021, às 19h02