Reunião pública marca o Dia da Trabalhadora Doméstica

O Dia da Trabalhadora Doméstica é celebrado anualmente no Brasil no dia 27 de abril. Nesta terça-feira (27), para marcar a data, a Câmara do Recife promoveu uma reunião pública para falar das conquistas e desafios da categoria, em especial no contexto da pandemia de covid-19. A iniciativa do evento partiu da vereadora Liana Cirne (PT).

As mudanças advindas da Lei Complementar 150/2015 – também conhecida como PEC das Domésticas – estiveram entre os pontos mencionados com recorrência pelos participantes. A mudança constitucional equiparou os direitos dos trabalhadores domésticos aos dos demais trabalhadores do país.

Também foram citados, diversas vezes, casos como o das trabalhadoras domésticas Cleonilce Gonçalves, primeira pessoa a morrer por covid-19 no Estado do Rio de Janeiro, e de Mirtes de Souza, cujo filho Miguel, de cinco anos, morreu no ano passado ao cair do prédio em que ela trabalhava, no Recife. Mesmo doente de covid-19 e sem ter com quem deixar o filho, Mirtes não foi dispensada pelos patrões, Sarí Gaspar Côrte Real e Sérgio Hacker.

Ao dar início à reunião pública, Liana Cirne lembrou a recepção social da Lei Complementar 150/2015. Ela mencionou uma publicação, que teria atingido dezenas de milhares de reações positivas, de um advogado que relatava que sua filha teria que dormir com fome porque sua babá passaria a ter horário de trabalho regulado. “Na época, me escandalizou o quanto naturalizávamos que um pai pudesse deixar sua filha de dois anos dormir com fome porque ele não iria preparar a mamadeira dela, e que não se aceitasse que a trabalhadora doméstica tivesse um horário para descansar”, contou. “É impressionante o quanto nós temos que lutar não somente na esfera legal, com a fiscalização dos direitos trabalhistas, mas contra uma cultura que naturaliza a brutalização desse trabalho tão importante”.

Segundo a vereadora, a reunião pública serve para que haja um posicionamento em prol dos avanços que a categoria tem conquistado. “Sediar este evento na Câmara do Recife significa dizer não a essa naturalização, corroborar para a defesa do cumprimento dos direitos inerentes do trabalho doméstico e fazer o reconhecimento da dignidade desse trabalho”.

Presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas e diretora do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Pernambuco, Luiza Batista ressaltou as melhorias representadas pela Lei Complementar 150/2015. Ao mesmo tempo, disse ela, a pandemia de covid-19 afeta diretamente profissionais da área.  “Neste momento, estamos enfrentando o segundo ano dessa pandemia terrível. Temos o que comemorar, mas é um momento de tristeza. Temos alegria porque são 85 anos de lutas e direitos conquistados. Ter uma lei é ter uma ferramenta para buscar na Justiça os direitos que não são respeitados. E tristeza porque a gente viu companheiras morrerem”.

Batista argumentou, também, que o trabalho doméstico deve deixar de ser considerado essencial na pandemia – dessa forma, ele deixaria de ser mantido em operação em momentos de lockdown. “Os decretos de lockdown colocaram como essencial o trabalho doméstico em diversos estados. Sabemos da importância do nosso trabalho e que ele permite que outras mulheres estejam inseridas no mercado de trabalho. Mas, em um momento de pandemia, com tanta gente em home office, não tinha por que Mirtes, por exemplo, estar trabalhando”.

Procuradora do Ministério Público do Trabalho da 6ª Região, Débora Tito enfatizou que a equiparação de direitos para trabalhadores domésticos ainda é muito recente no Brasil. “Embora a Constituição de 88 seja considerada cidadã, quem é do Direito do Trabalho sabe que só em 2015 houve a equiparação dos trabalhadores domésticos. Quando a gente fala de escravidão, realmente o trabalho doméstico é a última barreira, e o Brasil é um recém-nascido no que diz respeito a essa categoria. Temos, sim, uma dívida histórica. Até 2015, nem jornada esses trabalhadores tinham. Os desafios são enormes contra o entendimento de que essas pessoas são cidadãos e cidadãs de segunda categoria”.

Auditora fiscal do Trabalho aposentada, Felícia Mendonça relatou como se deu, inicialmente, a fiscalização do trabalho doméstico após as mudanças da Lei Complementar 150/2015. “Acho que o formato que a gente escolheu foi interessante: levar esse problema para a televisão, para a sociedade, para que juntos fizéssemos ações de promoção do trabalho doméstico decente. A conscientização é o primeiro passo. Somente a fiscalização não dá conta”, disse. “Depois da lei complementar, a gente iniciou um processo de fiscalização indireta. E, com o E-Social, colocamos um plantão especial de atendimento às trabalhadoras domésticas para poder colher as denúncias e, ao mesmo tempo, um plantão de atendimento aos empregadores para dar o apoio necessário para regularizar o vínculo”.

A desembargadora aposentada Magda Biavaschi, do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, disse que, mesmo antes da Lei Complementar, alguns juízes já estendiam a igualdade de direitos aos trabalhadores domésticos – mas não eram maioria. “Quero registrar o significado dessa luta histórica das trabalhadoras domésticas, que conquistaram uma regulação social pública mesmo em um país de mil e tantas misérias, e em que a dialética senhor-escravo não está superada. Essa é uma grande conquista dessas lutadoras. Direito é luta e organização. Essa é a fonte material prevalente das conquistas sociais. Estamos vivendo um momento em que os interesses privados estão subjugando o sentido do público”.

A vereadora Dani Portela (PSOL) também participou do debate e se posicionou contra a consideração do trabalho doméstico como essencial na pandemia. A parlamentar ressaltou, ainda, os recortes de gênero e raça que estão por trás das dificuldades das trabalhadoras domésticas para obterem mais dignidade. “O dia 27 de abril é o Dia das Trabalhadoras Domésticas, para marcar que essa é uma categoria majoritariamente composta por mulheres – cerca de 92%. O censo de 2018 dizia que essa categoria é composta por mais de 6 milhões de pessoas. Delas, 92% eram mulheres, dos quais 68% é de mulheres negras. E não dá para falar dessa data sem lembrar que estamos no meio de uma crise que não é só sanitária, mas econômica e social. As desigualdades historicamente existentes no nosso pais se aprofundam ainda mais, e a categoria das trabalhadoras domesticas foi a segunda mais atingida pela crise econômica trazida pela pandemia do coronavírus”.

Fundadora do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, Maria Betânia Ávila também refletiu sobre as desigualdades que são evidenciadas pelos desafios do trabalho doméstico. “Como um trabalho de mulheres, é considerado um trabalho de servir aos outros, como se elas não devessem ter o seu próprio tempo. Com a herança escravocrata, há uma interseccionalidade com uma questão de raça. E há, também, uma questão de classe, porque na origem deste país, o trabalho é considerado uma coisa da servidão. É algo forte e profundo que vem da desigualdade e da formação social deste país. A luta das trabalhadoras domésticas é uma luta pela democratização da esfera política, mas também pela democratização da vida cotidiana”.

O desembargador Fábio Farias, do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região, relacionou a dimensão e a precariedade do trabalho doméstico no Brasil à sua história política e econômica. “O capitalismo brasileiro construiu um conjunto de relações de trabalho no qual não existe o reconhecimento formal do emprego e do qual ele tem uma extrema dependência. Na minha percepção, o emprego doméstico no brasil passou a compreender um conjunto de atividades que deveriam ser desenvolvidos pelo Estado”, afirmou. “Quando [os brasileiros] não temos escolas, espaços públicos e creches, a gente contrata uma empregada a partir de um subemprego. Quando a velhice chega e não temos espaços onde nossos pais possam ser cuidados, contratamos uma empregada. Existe um entrelaçamento com a forma como esse emprego doméstico se desenvolveu no brasil e ele termina sendo um sustentáculo da dinâmica capitalista”.

Em 27.04.2021