Audiência pública coloca a luta contra a gordofobia em debate

"Se políticas públicas devem impactar o máximo de pessoas possível, por que elas geralmente excluem essa parcela considerável da população brasileira?" Essa e outras perguntas foram tema de uma audiência pública sobre a luta contra a gordofobia realizada de forma virtual pela Câmara do Recife na tarde desta quarta-feira (9), por iniciativa da vereadora Cida Pedrosa (PCdoB). Para o debate, foram convidados especialistas e membros de entidades ligadas à causa.

“Hoje é uma largada para muitas conversas. A gente precisa encarar esse assunto. No Brasil, 64% das pessoas estão acima do peso. Recife é a capital do Nordeste com o maior número de pessoas acima do peso. Quando discutimos políticas públicas para esse segmento, estamos discutindo políticas públicas para uma maioria da população”, disse Cida Pedrosa ao início da audiência.

De acordo com a parlamentar, é preciso debater o tema de forma transversal – ou seja, levando em consideração questões de raça, gênero e classe. “Quando a gordofobia vem à baila, vem eivada de preconceitos. É muito complexo ter um corpo que não é aceito. A sociedade capitalista constrói modelos para que ela possa navegar nos seus sonhos de mercado e consumo. A mesma sociedade capitalista que cria as comidas que não são saudáveis, cria os modelos de magreza que levam milhares de jovens à anorexia, à depressão, à tristeza. O corpo da gente chega primeiro e essa sociedade tem que aceitar, incluir e acolher os corpos de todas, todos e todes”.

Pedrosa é autora de três projetos ligados ao enfrentamento à gordofobia que tramitam na Casa de José Mariano. O projeto de lei nº 35/2021 pretende instituir o dia 10 de setembro – atualmente, o Dia do Gordo – como o Dia Municipal de Luta contra a Gordofobia. O projeto de lei nº 36/2021 busca estabelecer medidas a serem adotadas pelos estabelecimentos de saúde da capital no sentido de assegurar às pessoas gordas uma assistência adequada, acessível e livre de práticas gordofóbicas. Já o projeto de lei nº 37/2021 dispõe sobre medidas para garantir a inclusão e a proteção da pessoa gorda nos estabelecimentos de ensino localizados no Recife.

Beleza e autoestima – Idealizadora do projeto Mundo Plus em Movimento, Karla Rezende falou sobre a necessidade de redefinir o conceito de beleza e melhorar a autoestima da mulher gorda. “A beleza é um padrão estipulado pela indústria e as mulheres vivem em busca de um corpo perfeito que não existe. Dentro do projeto, trabalhamos com um processo que está mais na cabeça do que no que a gente come. Então temos que, primeiro, trabalhar a autoaceitação: a gente tem que se aceitar como é. Depois, trabalhar autoestima para a pessoa começar a se amar, entender que não é um peso que a define. A partir daí, a gente começa a se achar bonita, independentemente do peso. Quando estamos bem, as coisas começam a acontecer e a gente passa a ter voz para lutar por respeito”.

Rezende acrescentou que é preciso quebrar mitos sobre o bem-estar das pessoas gordas e estabelecer uma convivência baseada no respeito. “Não fazemos apologia à gordura e entendemos que precisamos, sim, ter uma vida com saúde e qualidade de vida. Mas nem todo magro é saudável e nem todo gordo é doente. O peso é só um número da balança. Isso é muito relativo e não conseguimos entender por que as pessoas não conseguem nos ver como pessoas normais. O foco principal é o respeito pelo que sou”.

Políticas públicas feitas com respeito – Segundo o ativista Marco Magoga, a luta contra a gordofobia evidencia como pessoas gordas são tratadas de forma hostil pela estrutura das cidades e pelas políticas públicas que deveriam ser benéficas para toda a sociedade.

“Quando falamos em políticas públicas, estamos falando em ações do Estado para todos. Se uma política não atende a todos, ela não pode ser chamada de política pública efetiva. Quando a gente fala sobre a gordofobia aqui na Câmara, parece um pouco fora de lugar. Pode parecer que são pessoas gordas buscando privilégios ou fazendo apologia à obesidade. Mas não tem nada disso”, afirmou. “É sobre pensar como a cidade está preparada para lidar com pessoas gordas. O poder público, como administrador da cidade, tem que pensar em maneiras para que a cidade seja acessível para todos”.

O ativista salientou alguns dos exemplos de estruturas e políticas que excluem, na prática, essa parcela que já representa a maioria dos brasileiros: macas e cadeiras adequadas em clínicas e hospitais, carteiras que não causem desconfortos nas escolas, e até mesmo caixões e valas apropriadas para essas pessoas. “Políticas públicas que enfrentem a gordofobia estão nos pequenos passos. Alguém que faz uma requisição para uma licitação pode ter uma visão inclusiva”, complementou. “Falar de gordofobia e políticas públicas vai além da aceitação pessoal. É sobre o Estado manter uma visão de planejamento capaz de incluir o maior número de pessoas possível. Mas a principal abordagem que se vê está localizada na área da saúde e se concentra em basicamente em tratar a obesidade como uma doença e enfrentá-la desde a mais tenra idade”.

Gordofobia e racismo – Para a fundadora do Coletivo Bonita de Corpo, a discriminação contra pessoas gordas ganha uma dimensão ainda mais preocupante quando o problema do racismo está presente. “Quando a gente fala de gordofobia para uma mulher negra, estamos falando de uma opressão ainda maior. A gordofobia está sendo debatida e os corpos gordos estão ocupando determinados lugares. Mas me pergunto que corpos gordos estão inseridos. Na maioria das vezes, vejo corpos brancos, dentro de um padrão. Penso muito sobre não ser possível debater a gordofobia sem debater junto o racismo”.

Ela falou, ainda, sobre práticas de gordofobia que estariam enraizadas no atendimento médico e de saúde. “É muito bizarro que o fato de sermos gordas seja o maior problema das nossas vidas. Você vai ao médico e não tem maca, não tem cadeira. A gordofobia me coloca em uma condição de inferioridade, como se eu fosse uma pessoa preguiçosa. E, de repente, você se vê adoecida com toda essa carga de opressões e violências. Como podemos cuidar da nossa saúde física e emocional se nenhum lugar que ocupamos são acolhedores? Não consigo enxergar uma resolução se não houver, de fato, uma política pública”.

Capitalismo a favor do preconceito - Por sua vez, a antropóloga e especialista em saúde coletiva, Beatriz Klimeck, que se reconhece como mulher magra, disse que entrou na luta da gordofobia, entre outras coisas, por entender que as pessoas não tinham diagnóstico de uma doença psiquiátrica pelo tamanho dos seus corpos. " Pensando nos projetos de lei, qual é o corpo que é detentor de direitos na nossa sociedade? Por que as mulheres têm seus direitos reprodutivos pela metade, não são plenas detentoras dos direitos sobre seus corpos? As pessoas pretas não têm direito à vida, muitas vezes são mortas pela força do Estado?" questionou. "Esse corpo detentor de direitos é um corpo branco, masculino e capaz. Para o Estado, a pessoa é capaz se puder ser mão de obra para ele, corpos com deficiência são vistos 'sem utilidade', porque não estão funcionando daquela forma para engrenagem. Além desse corpo ser masculino, branco e capaz, ele precisa ser magro". 

Ao utilizar o corpo magro como exemplo, Klimeck salientou que o capitalismo visa maior quantidade de lucro e reproduz o preconceito estrutural. "Esse corpo magro é o que faz com que o ônibus e o avião tenham "x" assentos, porque você diminui o espaço entre as poltronas e consegue colocar mais gente ali se todos aqueles corpos forem magros. O objetivo é sempre maximizar o lucro. É impossível não pensar em racismo, capitalismo, e nessas estruturas todas quando a gente fala sobre gordofobia. A minha fala é para contribuir com o pensamento de que todas as pessoas têm direito à saúde. Todas as pessoas têm direito à saúde, não como ausência de doença, porque o entendimento social e médico de obesidade como doença tenciona essa lei e se aproveita da moralidade da sociedade, de quanto a sociedade desaprova pessoas gordas para se sustentar e sustentar essa não garantia dos direitos à saúde", disse. 

Ainda sobre o direito à Saúde, Beatriz pontuou que oferecer cuidado, tratamento e saúde para pessoas gordas não é fazer bariátrica pelo Estado. "Não é oferecer acompanhamento nutricional, chegar na UBS (Unidades Básicas de Saúde), medir as crianças e colocá-las para ter tratamento. Se ele (o Estado) tem a intenção de melhorar a saúde de pessoas gordas,  tem a obrigação de garantir esse bem-estar coletivo delas do ponto de vista de saúde mental, pleno acesso a essas múltiplas estruturas da sociedade", finalizou. 

Educação contra bullying  A doutora em Educação com experiência na área de bullying e gordofobia nas escolas, Catarina Gonçalves, ao tratar sobre situações de bullying, mencionou o educador Paulo Freire: "a educação não muda o mundo, a educação muda as pessoas que mudam o mundo".  "Quando me deparo com situações tristes como a gordofobia sempre lembro que sou professora e que me é dada a oportunidade de pensar, trabalhar e investir o futuro. Não dá para falar em educação sem falar em transformação sem entender o contexto que marca essas relações tão discriminatórias sem pensar nas marcas da escola", afirmou. 

Ela explicou que o bullying é uma violência hierarquicamente igual, ou seja, ela só acontece de uma categoria para ela mesma. "Quando a gente vai pensar na gordofobia, a gente pensa no potencializador das situações de bullying. É uma violência hierarquicamente igual, não existe bullying de professor para aluno, de aluno para professor, nem de mãe para filho ou filho para mãe, aí passa a ser assédio. O bullying não é um preconceito qualquer, é uma intimidação sistemática que traz danos severos à psique, que acontece recorrentemente, independente das categorias que esse alvo vai utilizando para se dar conta dela. O bullying não é qualquer forma de preconceito, mas o preconceito é um fator potencializador dele", considerou. 

Catarina Gonçalves explicou explicou que é necessário pensar nas práticas no lugar do autor do bullying e também de quem sofre, do alvo. "A gente evita chamar de agressor e vítima porque nem sempre quem pratica bullying é necessariamente mau, mas tem hierarquia de valores investidos e construídos numa sociedade que é perversa como a nossa. Esse sujeito olha o mundo numa perspectiva que precisa ser desconstruída. Chamamos de autor para evitar o julgamento por parte de quem intervém, assim como não chamamos de vítima porque ela geralmente precisa de proteção. O alvo do bullying precisa ser empoderado porque há uma dimensão relacional da violência paritária. É preciso se perguntar como esse sujeito aceita se colocar nesse lugar de alvo e termina coadunando com as violências que sofre", explicou. 

Experiência vividas pela designer e pesquisadora do corpo gordo na moda, Carol Stadtler. Ela afirmou que teve a personalidade e identidade moldadas a partir das práticas de bullying e gordofobia sofridas. "Eu poderia relatar uma série de macro e micro agressões que sofri durante a vida, tanto por pessoas quanto pelo próprio Estado, pela escola. De modo geral, como bem a professora Catarina falou, eu sinto que a experiência de bullying que passei na escola, principalmente uma específica que durou três anos, me fez ser uma pessoa mais amena. Hoje, é muito difícil diferenciar quem eu sou do que eu fui moldada pela sociedade. Acho que todo mundo passa por isso, mas quando é reforçado por todos ao seu redor você acaba acreditando", relatou. 

Stadtler confessou ter vivido situações de gordofobia no ambiente escolar, desde a infraestrutura ao tratamento da própria instituição, mas entendeu que a questão era estrutural quando ficou mais velha e conversou com pessoas gordas. "Fui descobrindo que era uma questão estrutural principalmente do sistema capitalista, onde lucros são mais importantes do que pessoas. Quanto menores as cadeiras, mais gente, mais lucro. Quanto mais frágeis as macas dos hospitais, menos gasto, mais lucro. É um mundo inteiro. Quando a gente fala sobre saúde da pessoa gorda, dificilmente fala sobre saúde mental, normalmente é sobre colesterol, triglicerídeo, coração, dor no joelho, mas a gente não fala sobre saúde mental, como nós nos sentimos, quais são as questões que estamos passando. Já tive depressão e sofro com ansiedade, mas quando as pessoas querem saber da minha saúde, elas querem saber quanto está a minha glicose", expôs. 

Pesquisadora do corpo gordo na moda, ela exprimiu que a área é vista como 'supérflua', mas em um livro sugerido em uma disciplina da faculdade não tinham medidas de roupa para pessoas gordas. "É uma retroalimentação da indústria da moda e dos próprios saberes do ensino, porque está sendo ensinado desta forma e existe uma manutenção de como as coisas deveriam continuar a ser. Sendo assim, a gente pode falar de classe e raça, quando se tem acesso a uma renda maior, conseguimos ter acesso a muitas outras coisas, inclusive aos vestimentos. Mas muitas vezes a nossa única opção é a grande loja varejista que não está interessada na gente, em expandir a sua grade de tamanhos. Ela está interessada em vender e rápido", disse.

De acordo com ela, a questão da roupa expõe outros problemas. "Não se pensa nem no distanciamento entre os cabides [nas lojas]e muitas vezes você não consegue transitar, tem uma acessibilidade envolvida. Para além disso, reforçam a questão de que a pessoa gorda é mal cuidada,  não se importa com a aparência, que é uma questão pessoal, mas coloca a pessoa em um local de desleixo por falta de opção. Isso faz com que, muitas vezes, a gente não tenha acesso a um emprego. Além da aparência de desleixo, existe o estigma de que a pessoa gorda é preguiçosa. Para mim, esses projetos de lei representam uma luz no fim do túnel, porque acho que só a partir de políticas públicas nós podemos usufruir dos direitos que podem nos ser garantidos", manifestou. 

Encaminhamentos - A vereadora Cida Pedrosa deu alguns encaminhamentos elaborados a partir da audiência. "Do ponto de vista da iniciativa privada, vamos mandar as construções dessa audiência para o Clube de Diretores Lojistas, para todo o Sistema S. Também vamos encaminhar para o prefeito da cidade, em especial para os secretários de Saúde, de Educação e de Cultura. Vamos encaminhar, ainda, para o Conselho Regional de Medicina e para as coordenações do curso de formação de professores da UPE, UFPE, UFRPE e outras universidades. Podemos ter uma outra audiência quando voltarmos do recesso para aprofundar esta conversa, utilizando os cursos de medicina", pontuou. 

 

Em 09.06.2021