Em audiência, Câmara discute impacto do desmonte das universidades federais

Quais são as consequências, para o Recife, do desmonte das universidades federais? Para responder a essa pergunta, a Câmara Municipal promoveu uma audiência pública nesta quarta-feira (2), por meio de videoconferência. O debate, cuja iniciativa partiu da vereadora Cida Pedrosa (PCdoB), contou com a participação de representantes da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e de entidades de estudantes e docentes.

Cida Pedrosa analisou a conjuntura política em que se situam as tentativas de desmonte das universidades públicas – instituições responsáveis por mais de 95% da pesquisa científica do país, segundo relatório produzido para a Capes. “Quando tivemos ciência dos cortes nas universidades federais do Brasil, em especial nas de Pernambuco, logo nos colocamos a postos para fazer a luta para que elas tenham de volta os seus recursos e para que esses recursos deixem de ser contingenciados. Um país sem ciência é um país fadado ao subdesenvolvimento. Um país que nega a ciência é um país sem soberania. Infelizmente, estamos vivendo um momento obscuro na nossa nação, em que temos um ‘despresidente’ que teima em negar a ciência e quer desmontar as universidades”.

A parlamentar fez questão de apontar algumas iniciativas que revelam a importância das universidades federais para o Recife e para Pernambuco, como o convênio firmado entre Prefeitura e UFPE que viabilizou o projeto do Parque Capibaribe. “Mais do que serem casas do saber, as universidades têm uma relação intrínseca com as cidades. Imaginem o que seria estarmos sem o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco. Várias doenças raras só são tratadas naquele hospital. E o que seria do Recife sem o Porto Digital, todo amalgamado nas universidades federais de Pernambuco? O que seria do Recife sem o seu polo médico, o segundo do Brasil? O que seria da produção rural de Pernambuco sem a UFRPE?”

As universidades e a superação de desafios – Integrante da Academia Pernambucana de Ciências, a pesquisadora Lúcia Melo discorreu sobre a relação das universidades com as mudanças recentes do mundo nas áreas de tecnologia, trabalho e produção de conhecimento. De acordo com ela, toda a infraestrutura de conhecimento brasileira está sob ameaça – mas a superação dos desafios contemporâneos passa por uma aliança entre sociedade e universidades.

 “Sou muito otimista de que as universidades vão sobreviver, porque elas são muito maiores do que interesses de curto e médio prazo. Elas são patrimônios das cidades, dos Estados e do país, e ajudam a manter a soberania em termos de criação de conhecimentos e competências”, afirmou. “A gente tem um potencial nas nossas universidades que pode ser combinado com a agenda de desenvolvimento da cidade para reconstruir Recife com as novas bases da era pós-covid. Para isso, é preciso haver uma cooperação e um apoio forte da sociedade, para se conter o que chamamos de retrocesso civilizatório em curso no Brasil”.

Universidade como patrimônio estratégico para o desenvolvimento – O reitor da UFPE, Alfredo Gomes, apresentou o quadro de choque orçamentário representado pelos cortes. “Sofremos um corte da ordem de 20%, o que na nossa universidade representa R$ 30 milhões. Ou seja, regredimos ao orçamento de 2011. Esse orçamento, é claro, é insuficiente para honrar contratos e manter políticas nas áreas de ciência, ensino, assistência estudantil”, explicou. “Estamos envolvidos há muito tempo na luta para a recomposição do orçamento das universidades federais. Essa recomposição implica um projeto de lei do Congresso Nacional da ordem de R$ 1,2 bilhão. É um trabalho coordenado pelas universidades, em especial pela Andifes, que restituiria o orçamento de 2020 em 2021”.

Ele não deixou de salientar que o potencial de trocas produtivas entre a universidade e acidade precisa estar na pauta das autoridades. “A relação das universidades com as cidades é profunda e histórica, e deve prezar por diretrizes que contribuam tanto para o desenvolvimento das cidades e da cidadania. O Recife tem uma importância tremenda para a nossa instituição e somos influenciados por seus temas centrais – o mesmo para as nossas unidades de Caruaru e Vitória de Santo Antão”, indicou. “A universidade é um patrimônio estratégico do povo brasileiro. Ele está vinculado à nossa capacidade de produzir as condições de soberania nacional no campo científico, da formulação de políticas públicas e articulação da inteligência nacional. Como patrimônio estratégico, tem que ser preservada na condição de instituição pública comprometida com processos de políticas nacionais para mudar a vida do povo”.

O ex-prefeito Luciano Siqueira sublinhou a fala do reitor da UFRPE, Marcelo Carneiro Leal, sobre a importância das Universidades Federais na construção de um projeto nacional de desenvolvimento. "A nossa luta se dá em dois planos: no imediato, para deter essa escalada fascistóide, que ameaça a democracia, aos fundamentos da soberania do país. A gente tem que deter essa situação que está acontecendo no Brasil. Reuniremos forças das mais diversas, e as Universidades Federais têm força importante para colocar no nosso foco um novo projeto nacional de desenvolvimento que qualifique a ciência, tecnologia e inovação", ressaltou.

Desmonte das universidades, desmonte da sociedade – Para o reitor da UFRPE, Marcelo Carneiro Leal, o processo de desmonte se iniciou em meados dos anos 2010, se agravou com a aprovação da PEC 95, que impôs freios ao investimento em saúde e educação, e atingiu um nível crítico nos últimos dois anos. “Nesse corte [de 2021], que na Rural foi de 21%, foi feito um bloqueio de 13,8%. Sobre o orçamento que nos sobra, 40% estava disponibilizado e 60% contingenciado”, contabilizou.

Carneiro Leal rebateu notícias falsas que afirmam que o orçamento foi recomposto. “O orçamento não foi recomposto, mas esses 60% voltaram a ficar disponíveis com algumas variáveis. Tivemos que fazer ajustes. Ou se tomava atitudes, ou não se conseguia chegar ao final do ano. Tivemos que fazer cortes em contratos de trabalho. Mas, neste momento, decidimos não cortar bolsas. Hoje, temos cerca de 70% de alunos com renda familiar igual ou menor que um salário-mínimo e meio”.

De acordo com ele, as ameaças às universidades públicas põem em xeque a estrutura das cidades em diversas áreas. “Além da importância das universidades para o Porto Digital, para o Hospital Veterinário e para uma série de ações especificas, estamos falando de privar a inclusão de parte da sociedade que foi excluída por muito tempo da oportunidade de ter uma profissão, se formar, construir conhecimento técnico e cidadania. Isso vai impactar em todos os aspectos da cidade do Recife: a questão da segurança, da economia, da educação. Os professores do ensino fundamental não vêm de Marte. A base de sua formação está nas universidades públicas. São poucas as universidades privadas que se preocupam com cursos de licenciatura”.

Para salientar sua importância, afirmou Carneiro Leal, as universidades precisam aprender a se comunicar melhor com a sociedade. “Ao acordar e ao dormir, a sociedade se beneficia de processos construídos pela educação, pela ciência e pela tecnologia – no caso do Brasil, fortemente desenvolvida nas universidades. Precisamos nos comunicar melhor para a sociedade a importância dessas instituições para um projeto de nação. Defender educação, ciência e tecnologia como o principal caminho para o desenvolvimento do país e para a redução de desigualdades não é questão de opinião. É um olhar para a história da humanidade. Não existiu país nenhum que não se desenvolveu e reduziu desigualdades sem uma política de Estado de investimento em educação, ciência e tecnologia”.

Universidades Federais no combate à pandemia - A produção de 691 mil litros de álcool em gel e líquido, mais de 651 mil máscaras de proteção facial, mais de 500 mil escudos faciais, realização de mais de 660 mil exames de testagem da covid-19 em 2020, 85 milhões de pessoas beneficiadas pelas Universidades Federais brasileiras, correspondendo a 40% da população, foram alguns dos dados mencionados por Flávia Calé, presidenta da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), que salientou a importância da atuação das Universidades Federais e criticou o desmonte ao recursos para pesquisa. 

"Se a gente tivesse mais retorno e financiamento, certamente poderíamos ir muito além. O Brasil tem potencial de condições para autonomia sobre a produção de vacinas e insumos. A política de retenção de cérebros é um grande desafio, e acho que deve ser um objeto de debate nas Câmaras dos Governos, sem uma força de trabalho qualificada não conseguiremos sair dessa crise. Podemos perder uma geração de jovens pesquisadores", afirmou Flávia. 

Calé mencionou o grande desafio que os professores e as universidades terão de enfrentar com o fim da pandemia: de pensar na geração dos jovens na educação básica. "É o segundo ano de pandemia, segundo ano de escolas fechadas, segundo ano que os jovens perdem na educação, e muitos deles vamos perder para sempre. Isso aprofunda o ciclo de reprodução da miséria, e a educação é um elemento de ascensão social. O jovem acaba perdendo a perspectiva, no Enem, apenas 50% compareceram às provas. Isso é um problema também da universidade que vamos ter que enfrentar juntos e resgatar a perspectiva dessa juventude". 

Universidade não se faz apenas na sala de aula - Por sua vez, o  presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) Igor Montalvão, salientou que a universidade é constituída por um tripé: ensino, pesquisa e extensão. "As nossas universidades produzem muita coisa para nossa sociedade e dependem de recursos para que essas atividades sejam executadas. Os recursos não são exclusivamente utilizados nas atividades de ensino, mas também nas de pesquisa, que demanda uma infraestrutura grande. Há uma visão equivocada de que ser pesquisador ou estudante é algo complementar a uma profissão, mas ser estudante ou pesquisador é uma profissão, porque é preciso que essas pessoas estejam dedicadas a essa função. Se queremos reduzir as desigualdades, precisamos garantir que esse acesso seja de qualidade e dê condições às pessoas para que elas possam permanecer na universidade", disse. 

Forças para evitar a destruição - O presidente da Associação de Docentes da UFPE (ADUFEPE) Cristovam Vieira, pontuou a dificuldade na atual conjuntura política que o Brasil se encontra. "Há um desmonte total do Estado que começou com a PEC 95 no governo Temer, e foi consolidado agora, no governo do atual presidente, que é um desgoverno que vem atacando todas as instituições públicas destruindo os direitos trabalhistas. Temos que somar forças para evitar que essa destruição aconteça e não tenhamos problemas para os servidores públicos e população brasileira. As universidades estão sendo frontalmente sangradas em seus orçamentos, retroagindo para o orçamento de 10 anos atrás", lamentou. 

 A audiência contou com a escuta de representantes da sociedade civil, como Júlio Lima, membro do grupo Eu Defendo a UFPE, e da professora Rosário Vasconcelos. 

Em 02.06.21