Audiência pública debate assistência à gestação e ao parto no Recife
Ao dar início à audiência, Dani Portela fez um breve relato das possíveis violações à lei federal nº 11.108/2005, que garante às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. “A violação dos direitos das gestantes afeta, principalmente, a vida das mulheres negras, que são a maioria das usuárias do SUS. Temos recebido denúncias de que o Hospital da Mulher do Recife está impedindo pacientes de estarem acompanhadas de qualquer pessoa, seja no pré-parto, durante o trabalho de parto, ou no pós-parto. Acompanhantes ficam do lado de fora da maternidade e as pessoas que vêm do interior para cá não têm como voltar. Relatos indicam que mesmo as mulheres que fizeram cesariana ficam sozinhas”.
Segundo a vereadora, os problemas encontrados podem apontar para uma situação generalizada de desrespeito a direitos das gestantes e parturientes no Recife. Ela apontou, ainda, que a Prefeitura ainda não respondeu a um pedido de informações, protocolado por seu mandato em abril, a respeito de medidas de prevenção à covid-19 no atendimento à saúde da mulher. “As denúncias nos acenderam um alerta de que esses problemas podem estar acontecendo em outras maternidades municipais. E isso está no espectro do que chamamos de violência obstétrica, que também incide nos índices de mortalidade maternidade. Ao mesmo tempo, é um alerta para que outras violações a direitos possam estar acontecendo ao longo do acompanhamento a essas gestações”.
O vereador Ivan Moraes (PSOL) esteve presente na audiência pública e ele parabenizou a vereadora Dani Portela pela audiência pública. “O Recife precisava de um mandato como o seu para fazer a defesa dessas questões que dizem direito à mulher”, afirmou. Ivan Moraes lembrou que a capital de Pernambuco já batia recordes na mortalidade materna desde 2019. “Por que nem sempre diagnosticamos o grande número de mortes no Recife? Porque muitas mortes de mulheres não se davam em hospitais do município, mas do Estado. Elas eram atendidas e quando passavam mal numa instituição do município, eram levadas para a do Estado. Mas, somos sim o lugar onde mais se morre grávidas no mundo”, disse.
A doula Ana Luísa Freire representou a categoria na ocasião. Ela contou que, no Hospital da Mulher, acompanhantes têm sido impedidos de prestar assistência às parturientes. “As mulheres estão parindo sozinhas. O acompanhante nem sequer pode deixar a mulher lá dentro – da porta não passa. O que mais me assustou é que os acompanhantes não têm lugar para ficar. Muita gente vem de longe e fica exposta à covid-19, deitados na grama por dias. A justificativa é que não pode haver ‘estranhos’ lá dentro. Não conseguimos ter notícias delas. O descaso e a falta de tato me chamaram a atenção. Como uma pessoa que acabou de passar por uma cirurgia dá banho em um bebê, tomar um banho, comer direito?”
Representante da Articulação do Movimento de Mulheres de Bairro, Liliana Barros tratou da superlotação e da falta de recursos nas maternidades em todo o Estado. “A unidade do Córrego do Euclides não tem médico. As mulheres que têm recursos preferem pagar pelos exames, ou vão ficar esperando. E tem o deslocamento: muitas mulheres saem do Córrego do Euclides para Afogados para terem um atendimento. Quem tem dinheiro para a passagem, vai de ônibus. Quem não tem, vai andando. A pandemia agrava uma situação que é um retrato de superlotação, falta de assistência e de acesso a uma saúde digna”.
Representante do Movimento de Mulheres de Bairros, Elisangela Lopes, fez um relato de uma experiência pessoal. Ela contou que há três anos, uma filha adolescente, de 15, foi mãe. “Levei ela para a maternidade do Hospital Agamenon Magalhães, onde foi atendida. Ela estava em trabalho de parto, mas ficou num corredor durante horas, sem receber assistência psicológica”, disse. A filha deu à luz depois que Elisangela reclamou, a uma enfermeira, daquela situação. Elisangela também relatou o caso de uma vizinha que acabou de ter um bebê. “Ela foi para a Maternidade Barros Lima, onde fez a triagem. Sozinha, enfrentou uma situação difícil”, afirmou. A vizinha estava com a pressão arterial alta e mandaram ela esperar por ambulância, para ser transferida para o Agamenon Magalhães. A ambulância veio, mas ela esperou o carro durante 10 horas. “Ela conseguiu ter o bebê, mas agora está sozinha no Agamenon, pois não pode ter acompanhante. Ela se comunica comigo, pelo celular. Precisamos de uma articulação ampla para mudar essa realidade e manter nossos direitos”, defendeu.
A representante do Fórum de Mulheres de Pernambuco, Regine Bandler, fez diversas considerações sobre o tema e disse que a pandemia piorou a situação das grávidas, mas que os problemas de superlotação em hospitais são antigos. “Temos a necessidade de adoção de boas práticas em assistência ao parto. Estamos batalhando há 20 anos, no Comitê Estadual de Mortalidade Materna, buscando esse respeito pelas mulheres e vamos fazer isso sempre”. Ela aimou, ainda que “o andar de cima precisa ser questionado pelos depoimentos de superlotação e de má atenção nos hospitais”. As mulheres, acrescentou Regine Bandler, precisam ter um parto tranquilo e prazeroso nas maternidades municipais. “Precisamos de mudanças de assistência médica no atendimento às grávidas. As mulheres devem parir no ritmo que elas quiserem e precisam ter condições para isso”.
Regine Bandler alertou, ainda, que o Hospital da Mulher, que já foi referência em termos de equipe médica e na enfermagem obstétrica, está perdendo espaço na abordagem de acompanhamento das grávidas. Para ela, são dois os motivos para a queda de qualidade: o acolhimento, no Hospital das Mulheres, daquelas que vêm de outros municípios e também as transformações impostas aos serviços de saúde por conta da pandemia de covid-19. “Mas não se pode colocar todas as culpas de tudo o que acontece em cima da covid e da pandemia”, defendeu.
Enfermeira, membro da Articulação Nacional de Enfermagem das Mulheres Negras, a representantes da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, Rosário Trindade, disse que a “a assistência que nos é dada durante a gravidez, o paurpério e até em casos de aborto, é pautada pelo racismo. As pessoas e as instituições nos tratam de maneira diferente. A cobertura de atenção básica é precária em todo o Brasil e o Recife segue essa mesma lógica”, disse. Ela lembrou que, na atenção básica, é onde está a assistência à saúde de grande parte da população negra brasileira. “E nós não temos uma cobertura como merecemos. Nesse racismo estrutural e institucional, estamos mais expostas. O acesso a todos os serviços é precário. Além disso, a pandemia fez com que as gestantes estivessem mais expostas ao vírus, pois elas estão com defesas alteradas”.
Outra enfermeira obstétrica que deu depoimento na audiência pública foi Juliana Nogueira, do Hospital das Clínicas. Ela falou sobre a necessidade de adoção de boas práticas em assistência ao parto. “As nossas principais dificuldades são uma melhor formação de profissional e implementação de práticas diferentes na atenção básica. O poder público precisa ser cobrado sobre isso”. Ela questionou por que, depois de tantos anos de discussão sobre a assistência à mulher e do atendimento no parto, as mulheres ainda têm que se hospitalizar para dar à luz. “O que está faltando? Por que não descentralizamos a assistência obstétrica? É preciso deixar os hospitais para as mulheres que precisam e, assim, otimizar o atendimento. Dessa forma, a mão de obra não seria ocupada com mulheres saudáveis”.
O diretor do Sindicato Profissional dos Auxiliares e Técnicos de Enfermagem de Pernambuco (Satenpe), Magdiel Matias, afirmou que várias denúncias de má assistência às parturientes estão chegando ao sindicato. “Nós lutamos para manter um trabalho de enfermagem técnica de qualidade, para melhorar a assistência do usuário do SUS”, disse. As denúncias estão sendo verificadas e serão informadas pela entidade à Secretaria de Saúde, e ao Conselho Municipal de Saúde, pedindo providências. “Mas quero ressaltar que uma boa qualidade assistencial passa pelo salário. Um técnico em enfermagem ganha, por mês, R$ 774. É difícil dar uma assistência de qualidade recebendo esse salário, e tendo que trabalhar em dois ou três empregos para sobreviver. Fazemos plantões de até 12 horas por dia”, considerou. Ela também observou que as maternidades recifenses estão sucateadas.
Membro do Comitê Municipal do Estudo da Mortalidade Materna do Recife, Paula Viana fez uma denúncia. Segundo ela, 80% das mulheres que morrem ao parir, no Recife, podem ser prevenidas e evitadas. “O comitê analisa o óbito de uma mulher em todas as fases da gestação. É uma investigação que vai da fase domiciliar, hospitalar e da UTI. Reunimos essas informações e discutimos o caminho que ela seguiu para chegarmos a uma conclusão”, disse. “Das 80% que morreram no Recife em 2020, justamente 80% fizeram pré-natal. Ou seja, as mulheres não deixaram de buscar ajuda e de se cuidar. Concluímos que quem morreu foram as que não recebem assistência de qualidade”, disse. Paula Viana informou ainda que, nas causas, foram observados problemas como a falta de ultrassonografia nas maternidades, o que é um agravante para a mortalidade materna.
Outra questão crônica citada por ela foi a falta de laboratórios de análise nas maternidades municipais. “As maternidades têm que ser autônomas: há exames laboratoriais que desenham a necessidade de atendimento e podem salvar a vida de mulheres e bebês”, disse. De acordo com ela, a mortalidade materna aponta para problemas de gestão, de escolha por modelo de assistência, e de espaço para ser mais bem aproveitado para os pactos municipais. “O Recife recebe mais de 30% de mulheres de outros municípios que precisam de um atendimento mais especializado. Isso compromete a assistência”. Para ela, a construção de alternativas é lenta e disse que essa lentidão das respostas da gestão para resolver os problemas é um dos grandes problemas da saúde pública.
A defensora pública e coordenadora do Núcleo de Saúde Coletiva (Nudesc) da Defensoria Pública de Pernambuco, Ana Carolina Khouri, disse que o núcleo já oficiou as maternidades municipais do Recife pra garantir que as parturientes tenham direito a um acompanhamento e a uma doula de sua escolha. Esses acompanhamentos tinham sido suspensos por causa da pandemia. “Mas há duas notas técnicas do Ministério da Saúde que garantem, mesmo durante a pandemia, o direito de as mulheres e das crianças terem acompanhantes no pré, no parto e pós. Mesmo assim, continuamos acompanhando diversas denúncias de que esse direito não vem sendo assegurado”.
Ela afirmou que, como resposta aos ofícios da Defensoria Pública de Pernambuco, a Secretaria Municipal de Saúde informou que, através da portaria de número 32/2020, assinado pelo Secretário de Saúde, foi restabelecido o direito de a mulher ter um acompanhante em todas as maternidades municipais. “Ou seja, a própria gestão admite esse direito. E determinou que o direito fosse observado”, disse.
A analista ministerial do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça (Caop) do Ministério Público de Pernambuco, Suelene Chaves, falou sobre as ações do órgão na fiscalização da saúde. De acordo com ela, alguns municípios não têm cumprido o seu papel de assistência, sobrecarregando a capital e as unidades do Estado. “Nós temos nos movimentado. Temos um projeto de fiscalização da atenção básica em saúde e um dos eixos é a assistência obstétrica nos municípios. Temos alguns retornos sobre a situação. Uma das queixas é a questão da distância: as mulheres, muitas vezes, têm que viajar por até duas horas para receber a assistência. Como os municípios não têm tratado isso com respeito, a capital e fica sobrecarregada. Assim como os hospitais estaduais, que são unidades de alto risco e fazem partos que deveriam ser realizados nos municípios”.
A gerente regional de Promoção da Cidadania e Direitos da Mulher da Secretaria da Mulher do Recife, Ana Magalhães, falou sobre ações da pasta para tratar do tema, como o Centro de Referência Clarice Lispector, que vai passar a funcionar por 24 horas ao dia a partir de Agosto. Ela refletiu, também, sobre as consequências, na saúde obstétrica, da conjuntura de desmonte de políticas públicas em nível federal. “A violência contra a mulher tem sua causa no patriarcado. Garantir direitos para mulheres no sistema capitalista é uma luta longa. Não podemos esquecer que temos ter como norte a construção de uma nova sociedade. Valorizamos todas as falas e afirmações [da audiência]. Não viemos aqui para dourar a pílula. Essa é uma realidade agravada pela PEC de Contenção de Gastos. Precisamos ter isso em mente para reverter essa realidade triste que a gente vive no País”.
A Secretaria de Saúde foi representada pela gerente geral de Articulação e Monitoramento de Vigilância em Saúde, Rosimery Santos, e pela gerente geral de Atenção Integral, Érika Siqueira.
De acordo com Santos, a Prefeitura reconhece os desafios que enfrenta na área e busca soluções baseadas em informações qualificadas. “Temos nos debruçado sobre o monitoramento de dados e de informações que qualifiquem a nossa tomada de decisão. Concordamos com muitos dos pontos trazidos e temos algumas propostas de intervenção”.
Érika Siqueira prestou informações sobre ações da gestão para proteger gestantes da covid-19. Ela disse, ainda, que a Prefeitura trabalha em uma revisão dos seus protocolos de atenção em saúde, com o objetivo de atingir um modelo mais humanizado. “Estamos fazendo reuniões com as quatro maternidades nessa perspectiva da quebra do paradigma assistencial centrado no médico e no hospital. Estamos com a previsão de fechar os novos protocolos no final deste mês de julho para podermos encaminhá-los para os conselhos, chamando a sociedade civil para fazer essa discussão. Entendemos que temos esse papel de construção coletiva e esta audiência tem essa função democrática”.
Além dessas pessoas que fizeram parte da mesa de debates, muitas outras puderam participar por meio de uma ferramenta de chat. A vereadora Dani Portela leu as mensagens enviadas pelos internautas, que continham opiniões e denúncias. No final da audiência pública a vereadora disse que após o recesso parlamentar, em agosto, marcará reuniões com as secretárias municipais da Mulher e da Saúde, para checar as respostas aos pleitos apresentados. “Também vamos nos comprometer a fazer visita in loco para saber se tudo o que apresentado como solução está sendo cumprido”.
Em 02.07.2021