Audiência discute anteprojeto de Estatuto da Liberdade Religiosa

Laicidade, combate à intolerância, conscientização sobre a diversidade religiosa. Essas são algumas das finalidades de uma proposta de Estatuto Municipal da Liberdade Religiosa que deve ser apresentado pela vereadora Liana Cirne (PT) à Câmara do Recife em breve. Para discutir o tema, a Casa de José Mariano promoveu uma audiência pública nesta quinta-feira (26), por meio de videoconferência. Participaram do debate representantes do segmento religioso, do terceiro setor e do Poder Público.

Cirne, que conduziu a audiência, disse estar satisfeita com a oportunidade de discutir a questão. A parlamentar, no entanto, lamentou o contexto que faz do Estatuto uma necessidade, uma vez que a liberdade religiosa já é uma garantia prevista na Constituição da República. O projeto que ela deve apresentar vai levar o nome de Mãe Amara, sacerdotisa do terreiro Ilê Obá Aganjú Okoloyá que faleceu neste ano. “A liberdade de crença é uma garantia fundamental. Ao mesmo tempo, essa liberdade não tem sido respeitada, e de modo bastante seletivo. Algumas expressões de fé não sofrem violências institucionais, simbólicas ou mesmo físicas, ao passo que outras têm profunda dificuldade de se expressar. Isso se dá em razão do racismo religioso e da intolerância religiosa, que lamentavelmente tem crescido muito no nosso País, cuja presidência é ocupada por uma pessoa assumidamente intolerante”.

Integrante do gabinete parlamentar de Liana Cirne, a advogada e ativista Vera Baroni detalhou os pontos principais do anteprojeto, que busca reforçar direitos estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. “Esse estatuto se apresenta em razão do avanço exponencial da violação de direitos, que é histórica para os povos de matriz africana. A cada dia, em todo o País, tem avançado muito a violação de direitos, que precisa ser contida. O Estatuto da Liberdade Religiosa do município do Recife destina-se a combater todas essas violações e, ao mesmo tempo, informar as pessoas sobre seus direitos para que eles possam ser efetivamente exercidos”.

Ativista de direitos humanos e fundadora da ONG CRIOLA, Lúcia Xavier de Castro destacou a importância de incluir o direito à reparação no Estatuto e defendeu a articulação dos setores do Poder Público para o combate à intolerância contra religiões de matriz africana. Ela pediu, também, atenção especial para as violações do direito de crença dos grupos mais vulneráveis – como crianças, mulheres e pessoas LGBTQIA+. “O estatuto também tem que prever reparações. Essas pessoas têm suas casas quebradas, sua memória maculada e sobretudo perdem seus territórios. Na nossa sociedade, sua identidade e modo de cultura é violado”, explicou. “E é preciso ter especial atenção aos grupos mais vulneráveis, entre eles as crianças, que constantemente têm sido impedidas de ser iniciadas nas religiões de matriz africana. Essa é uma violência que não só impede o acesso dessa pessoa e sua família a um direito, como também marca profundamente para o resto da vida”.

A jornalista, empreendedora social da Rede Ashoka e coordenadora nacional do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (CENARAB) Makota Celinha Gonçalves Souza disse que a iniciativa da vereadora, com a proposição do Estatuto, era excelente. “Neste momento de grave crise política e de ameaça ao estado democrático de direito, ele é fundamental. Vemos o crescimento do fascismo e do racismo e precisamos tomar a dianteira das discussões, com proposições como esta da vereadora Liana Cirne. Digo nisso porque sempre vou lutar por estado laico”. Makota Souza ressaltou que o racismo religioso incide nas práticas religiosas. “A única religião brasileira é a umbanda, criada a partir da formação do povo brasileiro. E essa é, incrivelmente, a mais discriminada. O problema do País é a banalização do sagrado no outro”.

A promotora de Justiça e integrante do GT Racismo do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), Ivana Botelho, falou em seguida e afirmou que, diante do cenário em que estamos, é bom que exista iniciativa como a criação do Estatuto, através de um mandato. “O direito de culto, as liberdades religiosas e o crime de racismo estão previstos na Declaração dos Direitos Humanos, que é de 1948. E deviam ser pacíficos na sociedade porque também constam da Constituição Federal, de 1988. A Constituição prevê a laicidade do estado e a liberdade de cultos. Isso tem que que continuar e é dever do MP fazer manter esses princípios”, assegurou. Ivana Botelho também abordou a publicação de notas técnicas que preveem a classificação de racismo religioso e de injúria racial como crimes. “Há uma tendência de considerar o racismo religioso não como sendo de racismo, mas como injuria racial. Mas, há gravidade nas atitudes nesses casos. Os crimes devem ser entendidos como de racismo, que tem mais impacto do que o da injuria racial”, disse.

O cientista social, mestre e doutor em Sociologia, professor adjunto do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Francisco Jatobá de Andrade, considerou que o Estatuto é uma “proposta significativa por diferentes perspectivas” e disse que ele é importante não somente do ponto de vista das políticas públicas e de garantias de direito. “Ele tem também tem um caráter pedagógico de abertura de novas frentes, pois vai repercutir em toda a Região Metropolitana do Recife”. O professor também fez considerações a respeito do contexto sociopolítico. “Nos últimos 25 anos o Brasil passou por mudanças significativas na questão racial, que sempre foi uma constante no nosso debate enquanto nação”. Francisco Jatobá de Andrade deu como exemplos desses debates a política de cotas e a repercussão que elas tiveram; e o Estatuto da Igualdade Racial, que foi um marco na definição de políticas públicas. Ele fez um breve resumo das histórias de sofrimento e perseguição sofridas pelos afrodescendentes em vários momentos da história, as violências físicas e religiosas. “O povo negro sempre foi perseguido pela fé e pelas suas concepções do sagrado. Eu me pergunto como estamos em pleno 2021 e ainda passamos pela discussão de direitos que estão pela metade. Estamos lutando pelo óbvio”.

Mestre em Teologia e assessor do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) para a área de leitura popular da Bíblia, o pastor Kinno Alves Cerqueira pediu licença para “pisar o chão deste diálogo”. Ele, que é cristão protestante e pastor batista, considerou que o que observa nas religiões cristãs são contradições e paradoxos; empatia e indiferença; comunhão e intolerância. “Mas, em meios a tantos paradoxos, encontramos um fio nessa grande tradição que é o fio do amor, que se entrelaça com fio da justiça e faz nascer o fio da paz. Na minha militância como biblista reflito sobre a revelação bíblica. A mim, o que me interessa, é a revelação que a Bíblia faz daqueles e daquelas que a leem. A Bíblia não tem significados prontos. Eles são colhidos mediante a leitura, que é uma prática subjetiva. Sempre que a interpretação acontece, ali está sendo desvendado o coração de quem a interpreta. Ali se revela a intenção de vida de quem a lê”. Para o pastor, o estatuto que será apresentado pela vereadora Liana Cirne tem valor até mesmo teológico, “porque nos oferece um guia, um critério para se ler as sagradas escrituras a partir de um povo que sofre e daqueles que se solidarizam com esse povo que sofre. Juntos e juntas seguiremos”.

O representante da Fundação de Cultura Cidade do Recife, Uel Silva, parabenizou a vereadora pela iniciativa do projeto de lei que estabelece o estatuto. “Há uma relação entre a cultura e as atividades de diversas religiões, e é uma relação muito próxima. Por isso, queremos nos colocar à disposição enquanto instituição para acompanhar e contribuir com os grupos de trabalho e com as políticas afirmativas da questão da igualdade racial dentro das atividades culturais”.

No final da audiência, Liana Cirne afirmou que formará grupos de trabalhos técnicos para aprimorar a minuta do projeto de lei. Ela afirmou que pretende incluir no texto todas as contribuições que recebeu na audiência pública, para redigir a redação final. “Nossa meta é que, na semana de 6 a 10 de setembro, vamos apresentar o projeto de lei que institui o Estatuto da Liberdade Religiosa Mãe Amara. Vamos lutar para que ele vire realidade”.

Em 26.08.2021