Audiência pública coloca acesso à creche no Recife em debate

“Todas as crianças nas creches”. Foi esse o tema escolhido pelo mandato da vereadora Dani Portela (PSOL) para uma audiência pública realizada pela Câmara do Recife a respeito da universalização do serviço na capital pernambucana, em especial nas comunidades de Alto José do Pinho, Córrego do Deodato, Ilha de Deus e Bode. O evento aconteceu nesta quarta-feira (4), por videoconferência, e contou com a participação do secretário de Educação, Fred Amâncio, e de representantes de entidades da sociedade civil.

No início da audiência, Dani Portela lembrou que a educação infantil é um direito fundamental garantido pela Constituição da República. Ela salientou, ainda, que o Plano Decenal para a Primeira Infância do Recife, que entrou em vigor em 2020, prevê a ampliação das vagas nas creches do município.

Segundo a parlamentar, a realidade do acesso à creche na cidade, no entanto, é outra. “Estamos falando de um município onde as crianças têm tido o seu direito de acesso a uma educação pública de qualidade desde a primeira infância violado”, afirmou. “Hoje, 57% das crianças de zero a três anos não têm acesso a creche no Recife, que é uma das capitais com um dos maiores déficits do País”.

Dani Portela destacou que a falta de creches é um problema sentido, em especial, pelas mulheres – e ainda mais por aquelas que são marginalizadas por questões econômicas e de raça. “Esse cenário afeta, infelizmente, não só a vida das crianças, mas dos familiares e, principalmente, das mulheres. Muitas são trabalhadoras informais e mães solo, precisando do serviço para deixar seus filhos em segurança e garantir o desenvolvimento dessas crianças. Além de ser um direito de cada criança, a creche é uma forma de fazer justiça social em uma sociedade que é muito desigual e machista, especialmente para as mulheres negras e pobres”.

Segundo Prefeitura, há ampliação à vista Mas, de acordo com Fred Amâncio, o Recife está prestes a dar um salto na oferta de vagas de creches. “Hoje, nenhuma capital do Brasil conseguiu dar uma cobertura de 100%. Nossa capital tem avançado, mas temos um caminho a percorrer. O nosso prefeito, João Campos, assumiu o compromisso de duplicar a oferta de vagas de creche”.

O secretário de Educação afirmou que um plano de expansão de vagas deve ser detalhado ainda neste mês. Atualmente, o município conta com cerca de 6.500 vagas de creche. “Estamos trabalhando fortemente nisso e começamos em 2021 com essa ampliação. Temos obras em construção e unidades que vamos implantar ainda neste ano em algumas regiões, como Estância, Sítio Grande, Caranguejo Tabaiares, Vasco da Gama. Mas a grande aposta é o lançamento de um grande plano de expansão de vagas para os próximos quatro anos e que deve ser apresentado nas próximas semanas”.

Questionado por Dani Portela a respeito do atendimento a crianças das comunidades de Alto José do Pinho, Córrego do Deodato, Ilha de Deus e Bode, Amâncio disse que em todos esses territórios há previsão de abertura de unidades em breve. Os projetos estão em fases que variam entre o planejamento de engenharia, a busca por imóveis ou terrenos, e a captação do recurso. No caso do Córrego do Deodato e do Bode, a previsão é que sejam lançadas licitações ainda neste ano.

Câmara atenta ao debate sobre as creches – Um dos vereadores presentes na audiência pública, Ivan Moraes (PSOL) afirmou que age de forma coletiva e organizada, em união com a vereadora Dani Portela, no que diz respeito às creches. “Quero também fortalecer os grupos comunitários de que participamos, inclusive pela internet”. Em seguida, ele fez um breve resumo da situação das creches em diversas comunidades e fez considerações críticas à intervenção do secretário Fred Amâncio na audiência. “Muitas vezes fica a impressão de que a Prefeitura do Recife espera que as comunidades ganhem as questões, como essa da creche, de acordo com a influência das lideranças políticas”.

Já vereador Rinaldo Júnior (PSB), que também esteve presente na audiência pública, frisou que a luta pela educação de qualidade é uma de suas bandeiras, sobretudo a educação infantil. Ele, que faz parte da base do governo, assegurou que ouviu do prefeito João Campos que a sua intenção é zerar o déficit de creches da cidade do Recife. “É o compromisso número um dele. Sei que o déficit é grande e que não será um trabalho fácil. Temos consciência de que a creche garante a boa educação e a saúde para as crianças, daí a sua importância nas comunidades”.

Entidades, profissionais e moradores relatam problemas – Representante do Coletivo Fala Alto, Carolina Barros falou sobre os atrasos na entrega da creche do Córrego do Deodato. “Em 2007, houve um processo do orçamento participativo e a comunidade votou pela ampliação da escola Alda Romeu e pela construção de uma creche. Foi dada prioridade à escola, que já existia e tinha alunos matriculados. A promessa que ficou foi a da creche. Depois de 13 anos, o prédio continua do mesmo jeito, abandonado”, lembrou. “A Prefeitura citou uma lista de locais onde estão sendo construídas novas creches. Qual é o critério? Na comunidade temos um imóvel esperando há vários anos”.

A Associação dos Auxiliares de Desenvolvimento Infantil da Prefeitura da Cidade do Recife (Assadir) foi representada por Lílian Lopes. Ela reforçou a necessidade de não só ofertar mais vagas, mas de promover maior qualidade de ensino em todas as creches do município. “Somos uma categoria que trabalha cuidando e educando crianças de zero a três anos na rede pública. Nosso trabalho é focado para contribuir com o desenvolvimento da criança. Para garantir os direitos de crianças e famílias, precisamos de uma quantidade de vagas que a rede não suporta e da qualidade do trabalho que deve ser realizado nesses espaços. A Assadir promove visitas às creches e vemos creches com boas condições e, em poucos quilômetros, outra em condições muito precárias”.

Duas representantes da entidade ColetivA Cabras, que atua na comunidade do Bode, fizeram considerações durante a audiência. A primeira delas, Maíra Cabral, contextualizou o cenário de falta de acesso à creche no País. De acordo com ela, 5,5mi crianças brasileiras não estavam matriculadas na creche em 2020. “Houve uma grande diminuição, por causa da pandemia. E, por causa do problema econômico, muitas matrículas em creches particulares foram para o sistema público, que teve uma sobrecarga”, expôs. “O Fundeb só foi renovado em dezembro do ano passado, e só em abril deste ano que a verba começou a ser disponibilizada para os municípios pobres. O déficit na educação básica tem repercussões na vida inteira”.

Por sua vez, Jéssica Jansen falou sobre algumas das dificuldades que mulheres da comunidade enfrentam por conta do déficit de vagas de creche. “Aqui na ColetivA, trabalhamos com empoderamento, fortalecimento comunitário e profissionalização de diversas mulheres. Nesse trabalho, vemos o quanto uma creche municipal supre uma rede de apoio que muitas dessas mulheres não têm em casa. A creche educa, promove desenvolvimento intelectual, social, psicológico. São duas nuances que se entrelaçam: o direito da criança e o direito da mãe. Aqui, o número de mães solo é absurdo. E essa carga sempre cai no colo delas”.

A representante do Fórum Municipal Popular de Educação, Carmem Dolores, disse que o papel do fórum é acompanhar as políticas públicas do setor, em especial as metas do Plano Municipal de Educação, aprovado em 2015. “No que diz respeito à questão das creches e da educação infantil, o plano tem 21 estratégias. A de número um diz que a Prefeitura do Recife tem até 2024 para garantir que 70% da demanda de creches do Recife sejam atendidas nas comunidades”. Mas, segundo ela, bairros como Afogados, Mustardinha, Jardim São Paulo, San Martin, Ilha de Deus etc, têm apenas uma creche em funcionamento. “Essas creches jamais irão conseguir atender a 70% da procura da população”, disse. No Recife existe atualmente, de acordo com Carmem Dolores, 6.500 crianças que estão na lista de espera das creches, mas o fórum não tem acompanhar o cumprimento da demanda. “Sabemos que a Prefeitura do Recife também não está cumprindo a estratégia de número 11 do Plano Municipal. Ele determina que é necessário se fazer uma chamada publica para saber o número de vagas ociosas nas comunidades”. Ela afirmou que a Câmara do Recife, através da Comissão de Educação, é quem deverá fazer esta cobrança da estratégia 11, sobre o número de vagas.

Falando em nome do Sindicato Municipal dos Profissionais de Ensino da Rede Oficial do Recife (Simpere), Claudia Ribeiro afirmou que a falta de creches do Recife é um dos problemas de que mais se ressentem as mulheres trabalhadoras. “Muitas delas têm que abandonar os seus empregos porque não tem onde deixar os seus filhos. Mais do que uma instituição de ensino, a creche é parte do processo de libertação das mulheres. Sem autonomia econômica, porque não podem trabalhar, elas ficam mais vulneráveis. Portanto, a falta de creches é um problema de direito das mulheres, de direito fundamental das crianças, e um problema social gravíssimo”. Ela defendeu que haja eleições diretas para a gestão de cada creche e transparência no processo de ocupação de vagas.

Pelo Movimento de Luta pela Creche Municipal do Alto José do Pinho, falou Jailson de Oliveira. Ele disse que a discussão em torno da educação infantil e da carência de creches toma conta das comunidades. “No mundo em que estamos, de tanta violência e de outros problemas sociais, a creche passa a ser um equipamento público de muita relevância. Tanto para a mulher, como para a criança.  A creche é uma contradição à condição de marginalidade, pois estar num espaço educativo, com ações planejadas, muda a vida de uma criança”. Segundo ele, o grau de sociabilidade, coordenação motora e oralidade é um aliado para o desenvolvimento das crianças.  Jailson de Oliveira  observou que, só este ano, a comunidade do Alto José do Pinho já encaminhou oito ofícios ao prefeito João Campos, cobrando a construção de uma creche. “A grande pergunta é: quando se dará a efetivação da creche do Alto José do Pinho? Queremos um diálogo direto com a Prefeitura”, afirmou.

O líder comunitário Edson Fly representou a Ação Comunitária Caranguejo Uçá. “Quero dizer que a Ilha de Deus está junto com todos os territórios que lutam por esses espaços da primeira educação”, afirmou. Ele acrescentou que a luta pela creche está na origem da comunidade, pois a Ilha de Deus contava, desde os primórdios, com um desses equipamentos. “Mas o estado colocou a creche abaixo, dizendo que iria fazer uma requalificação. Até hoje, não a reergueu. Essa situação já dura 14 anos. Hoje, nós temos a consciência de que a culpa pela falta de uma creche é do Governo do Estado, que deixou de cumprir o que prometeu à comunidade.”. Ele afirmou que creche, na sua opinião, é mais do que um espaço de educação. É o primeiro passo para se garantir o futuro:  “Ela garante educação, uma convivência saudável, mas também é olocal ne a comunidade se reúne para lutar por uma gestão consciente e responsável. A Prefeitura do Recife precisa cumprir o que prometeu à população, mas está detonando o nosso sonho”, criticou.

Ministério Público explica repercussões de ação civil pública – O último a falar na audiência pública foi o promotor de Justiça Titular 22ª Promotoria em  Educação, Salomão Abdo Aziz Ismail Filho. Em suas considerações, ele disse que o Ministério Público “busca efetivar os direitos fundamentais e ser indutor das políticas públicas”. Em relação às vagas nas creches, lembrou que há uma ação civil pública de 2017, que já foi julgada procedente, pela 1ª Vara da Infância e Adolescência, mandando assegurar a vaga em creches a todas as crianças cujos pais procurassem os estabelecimentos. “A decisão judicial diz que, quando não houver vagas numa creche, o município deverá custear a passagem de ônibus dos responsáveis pelas crianças, caso precisem se deslocar para lugares distantes. Ou, então, custear creches privadas”.

O promotor, no entanto, observou que uma coisa é uma decisão judicial e, a outra, é a efetivação da sentença. “É difícil impor uma sentença sem haver antes uma previsão orçamentária para garantir aquela obra. A questão orçamentária é também um objetivo constitucional”, disse.  O Ministério Público, segundo ele, vem tentando mapear as Regiões Político-Adminsitrativas (RPAS) para definir a real necessidade de número de vagas de creches no Recife. “Esse trabalho é uma construção. A execução da sentença vem sendo trabalhada em conjunto com a gestão e com os órgãos envolvidos. O que podemos dizer é que há uma boa vontade por parte dos envolvidos na questão”.

O promotor também respondeu a questões que foram apresentadas durante a audiência pública. A vereadora Dani Portela disse que a Prefeitura do Recife precisa apresentar, pelo menos, um cronograma de construção de creches e que vai cobrar este encaminhamento em futura reunião com o secretário da Educação, Fred Amâncio, para quem vai enviar um documento com o resumo da audiência pública.

Em 04.08.2021