Audiência debate alternativas a despejos na Comunidade da Linha
A Comunidade da Linha, formada pelas comunidades Sítio Santa Francisca e Amor e Paz/Beco do Michelon, começou a se estabelecer na década de 1980, às margens de uma linha férrea da Malha Nordeste da Rede Ferroviária Federal. Há processos contra as pessoas que habitam no local em tramitação na Justiça desde 2011, e um despejo marcado para dezembro deste ano.
Ivan Moraes, que conduziu a audiência inicialmente, frisou a importância desse instrumento de participação. “Depois de várias tentativas de diálogo com a Prefeitura e com o Governo Estadual, compreendemos que não há ferramenta mais adequada para que esse diálogo possa acontecer com objetividade e encaminhamentos do que com uma audiência pública do Poder Legislativo Municipal. É um momento de participação direta, em que todos os sujeitos convocados e convidados têm direito a voz e os encaminhamentos possíveis são registrados no Diário Oficial para que se acompanhe se o combinado foi realizado”.
Dani Portela colocou em análise os direitos de moradia e de uso de uma linha férrea que, segundo ela, é subutilizada. “Qual a função de uma linha de trem e qual é a função social da moradia na comunidade do Sítio Santa Francisca, na comunidade Amor e Paz/Beco do Michelon? A Transnordestina deixou aquele espaço esquecido durante anos. Para uma empresa, pode ser apenas uma linha férrea, mas para as pessoas é o lugar onde muitas nasceram”, afirmou, sem deixar de chamar a atenção para as responsabilidades do poder público. “Encontramos uma comunidade com luz, água, iluminação pública. Mas não há serviços básicos, como saneamento e acesso ao ensino. O poder público se nega a existir dentro da comunidade, mas coleta dela encargos que deveriam voltar para as famílias por meio de ações e melhorias”.
A co-deputada estadual Carol Vergolino, do mandato denominado Juntas (PSOL), parabenizou os vereadores Ivan Moraes e Dani Portela pela realização da audiência pública. “Nós, da Juntas, conseguimos aprovar um projeto de lei que, finalmente virou a lei, a de número 17.400/2021, que é a Lei do Despejo Zero. Ela garante o direito de não haver despejos em Pernambuco durante a pandemia do coronavírus. Vamos fiscalizar essa lei em todo o Estado, mas vocês da comunidade da Linha podem contar com os mandatos dos dois vereadores do PSOL na Câmara Municipal do Recife. A lei é importante porque garante o direito à moraria, de cidadania, e também de saúde pública. Pois se a recomendação é ficar em casa para não se disseminar o vírus, não despejar é uma atitude de saúde pública”.
Moradora da Comunidade da Linha, Dona Terezinha deu um relato da história da habitação no local e das recentes ameaças de despejo. “A linha nunca foi murada, nunca teve um trem aqui passando para lá e para cá. É uma linha de manutenção. Depois de muitos anos é que chegaram as pessoas da Transnordestina. Cadastraram 95 pessoas e dividiram essas pessoas em processos, já no pensamento de enfraquecer o poder da nossa moradia judicialmente. Comecei a reunir o povo para juntar documentos e dar entrada na Defensoria Pública”, contou. “Muitas pessoas têm o seu trabalho aqui. Quem trabalha fora não precisa ir para longe, vão andando ou de bicicleta. É uma comunidade em que construímos nossas vidas. Com todo o sacrifício que a gente tem feito, não queremos sair. Aqui temos nossa comunidade, nossas amizades, nossas famílias. Precisamos de nossas moradias. Não podemos ir para a rua”.
Plano Emergencial de Incidência – Desenvolvido por um conjunto de organizações sociais e pelas equipes dos mandatos legislativos de Dani Portela e Ivan Moraes, o Plano Emergencial de Incidência foi detalhado pela mestra em Desenvolvimento Urbano Luana Varejão e pelo integrante do Centro Popular de Direitos Humanos, Luan Melo.
Eles trataram do contexto do conflito fundiário e da disputa jurídica, abordaram questões de direito à moradia e a recorrência do estabelecimento de comunidades lindeiras a linhas férreas, bem como apresentaram estudos de impacto relativos aos diversos cenários possíveis de desalojamento de famílias. Ainda existem divergências a respeito da metragem que deve ser reservada ao longo de cada lado da linha férrea – não se sabe se serão afetadas as famílias com casas em até seis, 15, ou 21 metros das margens. Assim, os números de pessoas afetadas variam entre 542 e 734 indivíduos.
Segundo Luana Varejão, estudos indicam a situação de vulnerabilidade dessa população, uma vez que a comunidade é formada predominantemente por mulheres e por pessoas pardas e negras. Além disso, pelo menos um terço dos moradores não só residem como trabalham na comunidade. “A retirada das famílias não acarretaria apenas um impacto na moradia, mas na condição socioeconômica dessas pessoas, que ou teriam que se deslocar muito para chegar ou trabalho ou teria comprometida a sua fonte de renda”.
Após fazer considerações sobre a legislação a respeito do tema e sobre as seis ações judiciais movidas contra os moradores, ela chamou a atenção para a responsabilidade da União no caso, em especial no caso de aplicação da reserva técnica de 15 metros a cada margem da linha. “Não constitui reserva técnica bens imóveis ocupados por famílias de baixa renda. Caso o DNIT venha a requerer o terreno como reserva técnica, ele deveria garantir o direito desses ocupantes”.
Varejão não deixou de apontar a necessidade dos governos municipal e estadual tomarem iniciativa em prol dos moradores e falou sobre os instrumentos legais que poderiam salvaguardar os direitos deles. “As casas que estão em área privada teriam direito a usucapião especial urbano, e as que estão em área pública teriam direito à concessão de uso especial para fins de moradia”.
Luan Melo detalhou o impacto dos cenários de remoção relativas às faixas de desocupação em 6 e 15 metros de cada lado da linha. “Fizemos análises em relação à legislação municipal para pensar em instrumentos urbanísticos que já são previstos para implicar a Prefeitura enquanto ator necessário. Parte da comunidade faz parte de uma zona de ambiente natural, para as quais o plano diretor determina que sejam feitos projetos especiais, no caso o projeto especial do Parque Tejipió”.
Ele destacou que a Comunidade da Linha não é o único caso de encontro entre comunidades urbanas e linhas férreas – e que, ao invés de gerar desalojamento, a situação poderia ser tratada de forma a beneficiar o urbanismo local. “Se existe alguma vocação para o ramal Edgard Werneck, é que ele seja um VLT de passageiros. Ele passaria por bairros densos, onde moram trabalhadores. Temos notícias de que o Instituto Pelópidas Silveira e o METROREC já fizeram alguns estudos”.
Melo apresentou, ainda, estudos de reassentamento em terreno disponível na comunidade e reforma de casas para os cenários de reintegração nas faixas de 6 metros e de 15 metros a cada margem da linha. No primeiro caso, haveria uma economia estimada de 38,5% em relação à construção de um novo conjunto habitacional. “A gente fez esse documento para dialogar com os atores que estão envolvidos em direção a uma intervenção de baixo impacto no território. Ou seja, uma intervenção menos traumática e menos custosa”.
Uma mesa de diálogo - Na sequência, falaram mais seis convidados. A procuradoria da República da 5ª Região foi representada pelo procurador Felipe Soares Araujo. “Nós trabalhamos com esse processo judicial da comunidade da linha. E quero informar que temos um requerimento pedindo suspensão do despejo das famílias por tempo indeterminado”, informou. Em seguida, foi a vez do defensor Público da União, da área de Direitos Humanos, André Carneiro Leão. Ele afirmou que a defensoria está atuando “na defesa dessa comunidade”, mas lembrou que, das seis ações judiciais que foram ingressadas pelo reclamante, que pede a reintegração da posse de terra, duas já têm setenças.
Uma delas deu resultado desfavorável para a comunidade e em favor do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT). “Nós levamos a discussão ao Superior Tribunal de Justiça e eles entenderem que deveria haver a reintegração de posse. A outra ação, no entanto, nós vencemos. Ou seja, a Justiça entendeu que a comunidade temo direito de ficar na área. As outras quatro ainda estão em discussão”.
Apesar do resultado da primeira ação judicial, o superintendente Regional do DNIT, no estado de Pernambuco, Cacildo de Medeiros Brito Cavalcante, mostrou disposição para dialogar com a comunidade. Ele deu explicações sobre os processos históricos da empresa (O DNIT é a extinta RFFSA) e explicou que o patrimônio operacional da linha férrea, na mudança do órgão, foi direcionado para o DNIT fazer a gestão. Cacildo de Medeiros esclareceu que o pedido de desapropriação adveio da preocupação do Departamento Nacional com a faixa de segurança que fica nas proximidades por onde o trem passa. “É essa faixa que nos preocupa, pois temos o propósito de evitar acidentes. A população que mora junto da linha pode sofrer sérios problemas”.
Cacildo Medeiros afirmou ainda que, apesar dos prazos dos processos judiciais, que estão tramitando, ele está “aberto para buscar solução visando não prejudicar a população que já reside no local”. Afirmou, ainda, que existe possibilidade de diálogo. “Estamos abertos para buscarmos um denominador comum”.
O especialista em ato regulatório da Transnordestina, Roberto Paiva Vieira, também mostrou disposição para o diálogo. Ele destacou o papel da Transnordestina como concessionária, mas adiantou que entende que a situação pode ter uma saída negociada. “Apesar desse entendimento, quero explicar que a concessionária tem limitações e precisa cumprir as medidas judiciais por causa dos contratos de arrendamento e de concessões que remetem à antiga RFFSA, quando ela foi extinta. Nós, da concessionária, somos apenas cumpridores dos contratos”. Roberto Paiva, no entanto, sublinhou que se o DNIT aceita conversar com a população, não há obstáculo por parte da Transnordestina. “Afinal, o que justificou o ingresso dos processos de reintegração de posse foram as faixas de domínio”.
O advogado do jurídico da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação do Estado de Pernambuco, Aurino Teixeira da Silva Filho, falou do trabalho de regularização fundiária e disse que pode ajudar a comunidade. “Uma área de segurança não pode permanecer ocupada, como é o caso da comunidade, pois ela pode sofrer danos. Mas, isso não impacta em toda a comunidade. No entorno da área por onde passa o trem, é possível se fazer a desafetação e a regularização fundiária”, disse. Ele afirmou que o Governo do Estado se coloca à disposição, através Secretaria de Habitação e da Seab, que tem competência de trabalhar com habitação e com regularização fundiária. “Nós podemos construir um processo negociado. Mas, é preciso também sensibilizarmos a Justiça Federal para que os juízes vejam a consequência de uma reintegração de posse”.
A representante da Secretária de Política Urbana do Município do Recife, Carla Dias, se colocou à disposição para ajudar numa futura mesa de diálogo. Ela, porém, falou de outro problema que a comunidade pode enfrentar, que são os riscos por causa da proximidade com a cabeceira do Aeroporto dos Guararapes. Carla Dias lembrou que está em vigência o novo plano de voo, que define as áreas de interferência no Recife. “Essa é uma área de interferência. A Prefeitura do Recife não se opõe a regularizar o terreno em favor da comunidade. Mas, alem de ser necessário se criar um arcabouço de segurança, garantindo esse direito, com a anuência do DNIT e da Transnordestina, precisaremos dessa anuência da Agência Nacional da Aviação Civil (ANAC). A comunidade deve ficar ali, mas com segurança”.
No final da audiência pública, o encaminhamento apresentado foi realizar uma nova reunião para continuar com o diálogo. Ficou entendido que a audiência pública atingiu o sucesso por construir uma mesa de diálogo. A próxima será uma reunião pequena, de trabalho, com a presença dos vereadores Ivan Moraes e Dani Portela, além das co-deputadas Juntas, representantes da comunidade, do DNIT, da Transnordetsina, Governo do Estado e Prefeitura do Recife. Outro encaminhamento, que dependerá da próxima reunião, é requerer a suspensão dos processos judiciais que visam a remoção das famílias, enquanto não se apresentar uma solução que não seja a remoção de toda a comunidade.
Em 22.09.2021