Câmeras de reconhecimento facial são tema de audiência na Câmara

Um projeto de contrato da Prefeitura do Recife com o setor privado pode resultar na instalação de 108 câmeras com tecnologia de reconhecimento facial na capital pernambucana. O tema foi alvo de uma audiência pública proposta por diversos parlamentares e conduzida pela vereadora Dani Portela (PSOL) nesta quarta-feira (16), na Câmara do Recife. Na ocasião, esteve em debate o enviesamento da tecnologia, o que pode levar a prisões equivocadas de pessoas negras e trans. Também foram levantados como preocupações os riscos de perseguições políticas, da violação de direitos individuais e sociais, e a necessidade de adequação à legislação de proteção de dados pessoais.

Apresentado pela vereadora Liana Cirne (PT) e subscrito pelas vereadoras Dani Portela e Cida Pedrosa (PCdoB), além dos vereadores Ivan Moraes (PSOL), Jairo Britto (PT), Luiz Eustáquio (PSB), Osmar Ricardo (PT) e Rinaldo Junior (PSB).

O objetivo da Prefeitura é instalar 108 relógios de publicidade no Recife. Além de anúncios comercializados por uma empresa contratada, esses equipamentos vão prestar informações como hora, temperatura e índice de qualidade do ar, e contar com câmeras de vigilância dotadas de tecnologia de reconhecimento facial.

No discurso de abertura de audiência, Dani Portela lembrou falhas que ocorrem nas diversas formas de reconhecimento por imagem e afirmou que a tecnologia que pode ser empregada no Recife não está preparada para reconhecer de forma adequada os rostos de pessoas negras. “Quando a questão é segurança pública, os softwares de hoje não conhecem fazer uma leitura eficaz de pessoas negras, o que pode resultar em abordagens e até na prisão de pessoas que sequer tenham mandados em aberto”, afirmou. “Isso é a nossa vida. É a vida de várias mães que olham a bolsa para conferir se seus filhos saem com o documento de identificação. Das mães que, cotidianamente, veem seus filhos saírem e têm medo que eles não voltem, por eles terem um perfil historicamente considerado suspeito”.

Ivan Moraes argumentou que não há estudos que comprovem a eficácia da tecnologia de reconhecimento facial para a melhoria da segurança. “Não há estudos que comprovem que a violência se reduz. Há estudos que comprovam que o povo negro vai mais preso. Se é para fazer parcerias para termos instrumentos de controle social, contem com a gente. Mas o reconhecimento facial é ilegal pela Lei Geral de Proteção de Dados e a própria tecnologia é racista. Distingue mal as pessoas negras umas das outras. Foram feitas para identificar pessoas brancas”.

Cida Pedrosa sugeriu que a Câmara provasse uma lei que banisse o uso do mecanismo na cidade. “A diversidade de assinaturas desta convocatória demonstra o quanto este assunto tem sido tratado de forma democrática nesta Casa. São inúmeros os casos que se estuda na faculdade de Direito do quanto os retratos falados levaram a Justiça a cometer injustiças. Então me parece que o reconhecimento facial é um instrumento aparentemente novo, mas que se utiliza muito do retrato falado, que comete equívocos. No Brasil, esses equívocos quebram para o lado da população negra e para as mulheres”.

Liana Cirne fez um resumo das principais preocupações que a instalação dos relógios provoca. “A Câmara se soma às instituições que compõem essa luta. Esperamos que esta nossa colaboração seja produtiva para a cidade. As críticas são de que a tecnologia em si tem elementos racistas que levam a falsos positivos. Isso é muito grave em um país em que o Judiciário já é marcado pelo racismo institucional. Levada a sério, o tema da segurança seria um elemento de enfrentamento ao racismo. Infelizmente, da forma como é tratada, ela reforça o racismo”.

Mudanças no edital – O Poder Executivo foi representado na audiência pelo secretário-executivo de Parcerias Estratégicas, Thiago Barros. Ele destacou um processo participativo que recebeu 96 contribuições sobre o projeto entre outubro e novembro do ano passado. Além disso, ele reforçou que os custos dos relógios seriam arcados pela iniciativa privada, que exploraria o espaço publicitário concedido por eles. Além disso, o contrato representaria a recuperação e manutenção de alguns espaços verdes do Recife por 20 anos. “O reconhecimento facial é um item em meio a um projeto que é muito mais abrangente”, afirmou.

Barros afirmou que as contribuições da sociedade trouxeram mudanças ao edital do contrato relativas à adequação à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). O edital, segundo ele, agora traz regras que preveem que o uso da tecnologia de reconhecimento facial apenas quando houver uma regulamentação da LGPD que a permita. Além disso, o novo edital deixaria claro que a empresa contratada seria responsável por apenas comprar e instalar as câmeras, não podendo se utilizar dos dados gerados pelo sistema de reconhecimento facial.

“Para nós, já estava subentendido que a utilização dessas imagens e a utilização mais ampla dos dados gerados pelas câmeras seriam de propriedade exclusiva do poder concedente. A concessionária seria responsável pela infraestrutura, por colocar a câmera lá. A responsabilidade explorar as funcionalidades da câmera é da Prefeitura. Mas, de fato, isso não estava claro no edital. Também não estava claro no edital que a gente só poderá fazer uso relacionado ao reconhecimento social se tivermos o aparato legal para isso”, admitiu.

Racismo e riscos à democracia – Representante do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec), André Ramiro afirmou que podem existir uma série de irregularidades na forma como o algoritmo da tecnologia a ser adquirida. De acordo com ele, não é possível saber, por exemplo, se a base de dados que serviu para “treinar” a inteligência artificial é lícita e se possui a diversidade étnica que possibilitaria a precisão do reconhecimento. “Com base nessa justificativa, uma série de empresas de renome, como Microsoft, Amazon e IBM, estão encerrando o fornecimento de reconhecimento facial para forças de segurança pública do mundo inteiro”.

O Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados, Informática e Tecnologia da Informação do Estado de Pernambuco (SINDPD) foi representado por Venício Dantas. Ele levantou dúvidas sobre a possibilidade de o contrato da Prefeitura não infringir a LGPD, que proíbe o tratamento de dados para fins de segurança pública pelo setor privado. “O simples armazenamento e a simples coleta são tratamentos de dados pessoais. Em nenhum caso, a totalidade dos dados pessoais poderá ser tratada por pessoa de direito privado, salvo aquela que possua capital integralmente constituído pelo poder público – ou seja, a empresa pública”.

 É preciso que o poder público adote uma postura de cautela com a tecnologia, especialmente se houver suspeita de um viés racista, disse Paulo Faltay, do Rede Latino-americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits). “A tecnologia não é mais aquela tecnologia de garagem. Ela tem uma escala gigantesca e o mínimo erro pode causar grandes violações de direitos. A tecnologia-mãe do reconhecimento facial é a tecnologia de reconhecimento visual de padrões. Pode ser muito bem usada para a automatização de diagnósticos de câncer. Aplicada a rostos, essa tecnologia carrega uma história, como o racismo científico da medição de crânios e atribuição de padrões para faces humanas, como também o vigilantismo. O que a gente vê no mundo é que as cidades mais modernas estão banindo o reconhecimento facial”.

José Vitor Pereira Neto, representante da Articulação Negra de Pernambuco (Anepe), lembrou que o Brasil já enfrenta um problema de encarceramento elevado da população negra. Com a terceira maior população carcerária do mundo, o Brasil tem 770 mil pessoas presas, das quais 66,7% são negras. “Para mim, é muito óbvio que, como todo esse enviesamento, ela vai recrudescer a desigualdade contra a população negra e mais vulnerável. O padrão da construção da tecnologia é, como sempre na sociedade ocidental, o homem branco, hétero e cis. Essa tecnologia não é feita para reconhecer corpos dissidentes, como mulheres e homens negros e, em especial, das pessoas trans”.

A representante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA) conectou o aumento do uso massivo de dispositivos de reconhecimento facial como um sinal do crescimento do autoritarismo. Ela alertou para a possibilidade uso da tecnologia para a repressão política. “Vivemos no Brasil um aumento do vigilantismo com fins de repressão e cerceamento da liberdade de expressão. Há comprovação de que esses sistemas podem, inclusive, ter algoritmos para reconhecer pessoas com camisas de determinada cor. Em períodos de disputas políticas, isso se torna muito arriscado para a sociedade civil organizada e para toda a população. Há um projeto político em curso para aumentar o vigilantismo sobre os movimentos sociais”.

Segundo Tereza Mansi, representante do Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH) também alertou para os efeitos negativos da vigilância sobre a liberdade de manifestação. Além disso, ela lembrou que as câmeras podem infringir direitos à imagem de crianças e adolescente e, também, um direito que foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal: a autodeterminação informativa. “É um direito que decorre do direito à privacidade. As pessoas têm direito a suas informações pessoais e, para elas serem passadas adiante, tem que ser com consentimento ativo, o que não há com o reconhecimento facial em espaços públicos”.

Investigação no MP – O promotor de justiça Maxwell Vignoli informou que o Ministério Público instaurou um procedimento de investigação contra a Prefeitura para que o Poder Executivo preste informações sobre a possível instalação dos equipamentos. “Controle é diferente de segurança. Em certo momento, esse controle pode ser privilégio de uns sobre outros e acaba retirando alguns direitos. Em especial de pessoas trans e negras e que estão em situação de vulnerabilidade, já que esses algoritmos não são alimentados por dados que não são da composição étnica da nossa população”.

De acordo com ele, não é possível o município legislar sobre o assunto para garantir uma regulamentação da tecnologia de reconhecimento facial adequada à LGPD, por se tratar de temas de direito penal e de direito processual penal, exclusivos da União. Além disso, as questões de segurança devem ser legisladas pelo Estado de Pernambuco. “Até que isso seja regulamentado, não cabe ao município tratar sobre questão de segurança, que é uma atribuição exclusiva do Estado. Estamos falando sobre os dados daquela pessoa serem utilizados no processo penal. E não só isso, fazer a utilização desses dados sem autorização, desde a coleta para a formação de banco de dados inicial para avaliação de outras pessoas, o que já parte de um princípio de ilegalidade”.

Em 16.03.2022