Audiência pública discute direitos de pessoas neuroatípicas

Autismo, Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, dislexia, discalculia. Esses são alguns exemplos de transtornos que podem ser classificados como “neuroatípicos”, isto é, divergentes do padrão neurológico humano considerado típico. Os direitos das pessoas neuroatípicas foram o tema de uma audiência pública promovida na Câmara do Recife nesta quinta-feira (7). O debate, realizado pela vereadora Liana Cirne (PT), serviu de pontapé para a construção de um Estatuto Municipal da Neurodiversidade que deve ser apresentado em breve ao Poder Legislativo.

Ao dar início à audiência, Cirne lembrou que pessoas com diferentes formas de neurodivergências passam pelos mesmos problemas. Identificando-se como uma pessoa com TDAH e mãe de uma pessoa com transtorno do espectro do autismo (TEA), ela acrescentou que é comum que os dois ocorram conjuntamente. Ela ainda afirmou que, mesmo que o Brasil já possua uma Lei de Inclusão considerada avançada, a norma poderia ser aperfeiçoada.

“Não temos um arcabouço jurídico normativo para todas as neurodivergências e isso é problemático. Quando pensamos nos direitos, queremos os mesmos direitos. Quando pensamos nos problemas, passamos pelos mesmos problemas”, afirmou. “Outra coisa que sentimos falta é que, de um modo geral, a legislação é voltada para o serviço público, mas sabemos que os problemas, preconceitos e violações de direitos se dão tanto na esfera dos serviços públicos quanto na dos particulares”.

A parlamentar afirmou que o seu objetivo era abrir, com a audiência, um espaço de debate que resultasse na criação de um marco legal para o Recife. “Esta audiência é para ouvir e, a partir disso, dar uma proposta. A nossa sugestão é que formemos grupos de trabalho para elaborar o texto da lei com a presença da Secretaria de Saúde, da Secretaria de Educação, da sociedade civil, da militância das mães e das próprias pessoas neurodivergentes”.

O vereador Ivan Moraes (PSOL) também participou da audiência. Ele comemorou o avanço dos movimentos de direitos de pessoas com transtorno do espectro do autismo e afirmou que a audiência era, também, uma forma de conhecer quais são as ações e planos do município para pessoas neuroatípicas.

“Hoje de manhã teve uma audiência pública na Assembleia Legislativa conduzida pelas Juntas Codeputadas (PSOL) e eu fiquei muito feliz em saber que a Secretaria de Saúde do Estado ficou de encaminhar um plano de atenção às pessoas autistas, o que até então não havia. Independente do que for feito, as pessoas autistas estão dentro da lei brasileira de Inclusão e existe uma série de direitos que precisamos conquistar”, relatou Moraes. “Dentro da diversidade do autismo, existe gente que precisa de pouca atenção, que precisa de alguma atenção e que precisa de um centro de referência, de um neuro acompanhando. Fico curioso para saber o que já está sendo feito na Secretaria de Saúde e quais são os nossos desafios”.

Um dos convidados da audiência foi o jornalista Tiago Abreu, autor do livro “O que é neurodiversidade?”, lançado neste ano. De acordo com ele, o termo “neurodiversidade” explica como os diferentes padrões neurológicos humanos criam um conjunto diverso de contribuições que é benéfico para a sociedade. O conceito serve, ainda, para estender direitos para pessoas com neurodivergências que são pouco contempladas, como o TDAH.

“Assim como existe o termo biodiversidade, a neurodiversidade seria sobre a diversidade neurológica que existe em toda a população. É sobre as pessoas com transtornos, mas também sobre os chamados neurotípicos [pessoas com padrão neurológico típico]. Todos nós colaboramos para novas perspectivas de mundo e contribuições”, explicou. “O diagnóstico de autismo muitas vezes anda junto com outros diagnósticos, como o de TDAH, dislexia, discalculia. Quanto mais a gente pensar em algo que seja coletivo, significativamente amplo, talvez a gente consiga alcançar certos direitos que são negados a pessoas com outros transtornos”.

Relatos maternos - Mãe de autista e ativista, Mônica de Lucena disse na audiência pública que tem um filho com 11 anos, que tem autismo e que faz parte de um grupo, o Vivendo Com Autismo, que reúne 200 famílias. Mônica de Lucena ficou emocionada ao contar que o seu filho foi desligado de uma instituição que deveria fazer a reabilitação infantil, a Guri, quando se descobriu que ele tinha autismo. “Meu filho ficou chocado, se perguntando por que foi afastado. Ele dizia mãe eu não fiz nada. O meu filho levou uma rasteira e seu senti na pele”, denunciou. Desde então, ela decidiu “correr atrás, pois sou mãe e isso é difícil”.

Mônica de Lucena acrescentou que ao longo dos anos tem acumulado experiências e que, “mesmo sangrando, tenho que dar uma palavra de consolo para outras mães que estão em situação difícil. Afinal, se é difícil para nossos filhos encontrar um apoio profissional, imagine para quem cuida dos filhos. A gente também precisa de atenção e apoio”. Para ela, faltam profissionais preparados para cuidar dos filhos e também dos cuidadores. “Eu passo as minhas experiência para muitas mães. É preciso nos unirmos. Conheço mães que tiram a vida porque não suportam a discriminação que, muitas vezes, começa em casa”.

Outra mãe de autista, a ativista organizadora do Mobilizadores TEA Pernambuco, Polly Fittipaldi, disse que é mãe de gêmeos autistas univitelinos e embora eles sejam cromossomicamente iguais, têm autismos diferentes. Ela ressaltou que é importante que se faça tratamento de saúde adequado aos autistas e que, quando fala em tratamento, refere-se à necessidade de atendimento à família inteira. “Quando um autismo é desrespeitado, todos o são. Passei dez anos negando o autismo do meu filho e não adiantou nada”, contou. “O autismo não é uma coisa nova. Se temos muito autistas hoje é porque não os escondemos mais; e agora queremos um tratamento adequado”. Ela criticou o papel dos CAPs infantis (Centro de Apoio Psicossocial), que segunda ela são em número insuficientes no Recife.

Polly Fittipaldi pediu ainda a criação de um censo municipal que identifique quanto são os autistas do Recife, para definição de políticas públicas. “Seria possível fazer um censo se as autoridades usassem as plataformas da Prefeitura do Recife, para que os dados coletados servissem para a rede municipal de ensino, por exemplo. Aliás o censo está feito, é só usar o Conecta Recife ou as matrículas das escolas. Se não temos o número definido hoje é porque eles não querem, portanto falta vontade política”. Ela lembrou, no entanto, que o autista não é obrigado a se identificar.

Na definição de políticas públicas, Polly Fittipaldi  sugeriu a adoção de placas para identificar os profissionais que foram treinados para lidar com o autismo. “Temos que treinar os órgãos de fiscalização, como a CTTU e a guarda municipal. Os profissionais deveriam usar o símbolo do autismo para dizer que elas foram treinadas”, afirmou. Na questão da educação, ela disse que é importante facilitar o acesso do autista às escolas. “Na rede municipal, os professores não são treinados satisfatoriamente para lidar com os autistas. Muitas são jovens e não têm maturidade para o fazer. Mas, nas escolas privadas, é pior, pois elas não dispõem nem de profissionais para isso”.

Na questão do transporte, ela sugeriu a criação de assento preferencial para autistas e acompanhantes. “Antes, de criar os assentos, porém, seria importante criar uma lei que previsse multa para alguém que usasse inadequadamente o assento preferencial.” Para os autistas severos, que precisam se deslocar para fazer o tratamento de saúde em locais distantes de casa, ela propôs um programa de apoio financeiro ao transporte. Polly Fittipaldi falou ainda do abandono paterno, quando descobrem que os filhos são autistas, e de várias outras formas de violação de direitos.

A psicopedagoga e neuropsicopedagoga Juliana Aguiar, que é especialista em TEA e TDAH, disse que também é mãe de crianças com sinais de neurodivergências. “Hoje, pela necessidade e amor à causa, atuo 24 horas por dia”. Ela pontuou que é preciso lembrar que antes de serem autistas, são crianças. “E as crianças autistas, como todas as outras, têm as suas especificidades”. A psicopedagoga disse também que é preciso pensar que o autista é uma criança que vai virar adulto e que continuará um adulto autista. “Precisamos fazer intervenções de qualidade hoje para lhes garantir independência no futuro. Tudo isso só é possível a partir de terapias bem planejadas e estruturadas para um prognóstico melhor”.

Cada criança é única, alertou Juliana Aguiar, acrescentando que cada uma tem a sua particularidade. “Não podemos pensar no autista como modelo único”, observou. A psicopedagoga  afirmou que a criação de uma lei é importante para apoiar a causa do autista e regular as terapias, mas que não se pode pensar “em uma lei que estabeleça uma acompanhamento para o autista de suporte 1, 2 ou 3. Não há como especificar algo tão diferente. Não se pode pensar num modelo único de autista. As questões de saúde são muito delicadas. Cada um tem suas demandas”, alertou.

A psicopedagoga acrescentou que a maior incidência do autismo ocorre com meninos, mas que é comum identificar meninas dentro do espectro. “Temos muitas coisas a lutar, sem desmerecer a luta de ninguém. Precisamos abrir o olhar para o tratamento e para acolhimento das mães”. Segundo ela, é importante também que a sociedade acolha as famílias e que tenha empatia com a situação.

Plano de Saúde - A secretária de Saúde do Recife, Luciana Albuquerque falou em seguida. “Essa audiência tem um tom e uma causa especiais. Vim para demonstrar a nossa preocupação com esse desafio”. Ela disse que quando chegou à Secretaria de Saúde, queria ampliar a cobertura da saúde da família. “Mas havia muitos desafios que precisavam ser resolvidos. Quem estava na Saúde, viveu de forma pesada, que foi a covid-19. Olhamos para trás e não acreditamos o que vivemos. O enfrentamento à covid-19 tirou nosso foco que era a diversidade dos serviços na saúde”. De todos os desafios na saúde, segundo ela, o enfrentamento ao espectro autista é um dos maiores, a enfrentar. “Digo isso porque nem a legislação, nem os serviços atendem às necessidades. Não sabemos qual o primeiro passo”.

“O passivo é grande, os desafios são grandes, mas vamos enfrentá-los priorizando-os”, observou. A Secretária de Saúde disse que não se faz saúde sem gente, sem profissionais. “A partir das falas que ouvi, posso dizer dos serviços do Recife: os nossos quatro CAPs são as portas de entrada que fazem o diagnóstico e acompanhamento”, afirmou. Segundo ela, a capacidade de trabalho desses CAPs aumentou. “Temos ainda quatro serviços próprios contratualizados que acompanham TEA e TDAH, que são o  Neguim, Cervac, Guri e o íris. Esse é o desenho de nossa rede hoje. O nosso passivo de reabilitação é grande e de muitos anos”.

A secretária Luciana Albuquerque disse, ainda, que a gestão não está “de olhos fechados para essa questão” e que sabe “dessa necessidade da população”. O prefeito do Recife João Campos, segundo ela, vai lançar o Plano de Saúde Municipal em breve e a peça “terá foco na política de reabilitação”. O tratamento do TEA será um dos escopos de prioridade da Prefeitura do Recife.

Quem falou em seguida foi a  professora doutora em Direito Civil, Carolina Ferraz, advogada especialista em direito antidiscriminatório, que elaborou o primeiro Manuel dos Direitos da Pessoa com Deficiência, e mãe de um autista. “Participo como mãe, ativista e jurista, que vim para provocar. Se vamos escrever um estatuto, devemos primeiro fazer uma consulta para saber quem somos a partir do olhar da pessoa autista”. Ela fez uma divisão do movimento autistas em três fases. Disse que a primeira onda foi um movimento feito pelos terapeutas; a segunda fase foi a luta feminina, pois quem está à frente são as mães, tias, filhas. “Mas, como mães, sofremos pelo outro. A voz dos autistas adultos precisa ser amplificada. Os coletivos adultos precisam estar aqui”, defendeu. Essa, disse, seria a terceira fase.

Carolina Ferraz defendeu a criação de um censo que identifique o autista e sua família. “Só nós sabemos o que passamos. A violência começa dentro da família. Não recebemos convites, ou recebemos convite excluindo nossos filhos. Sofremos violência diuturna”. Outro desafio que ela apontou é a negação dos direitos não só na saúde, educação, habitação, como também na afetividade, formação de família e  sexualidade. “Uma legislação precisa tratar desses eixos”.

Carolina Ferraz disse que é comum o pensamento de suicídio nas pessoas que cuidam de autistas. “Precisamos, portanto, de uma equipe multidisciplinar que também dê esse apoio. Pecisamos falar sobre essas coisas com o estado”. Ela criticou as escolas privadas e disse que, nelas, há casos de atrocidades e aberração com os autistas. “Precisamos revolucionar o processo educacional. Se a educação não for para todos, não é educação. Educação tem que ser um ato de coletivização”. Outro ponto que ela defende foi a medicina na família para atender o autista severo. “Está na hora de sermos vistos, abraçados, acolhidos”.

A gerente de Educação Especial da Secretaria de Educação do Recife, Adilza Gomes, identificou-se como uma pessoa com transtorno do espectro do autismo e se disse emocionada com os relatos ouvidos durante a audiência. De acordo com ela, a maior dificuldade para promover o ensino inclusivo na rede são as barreiras atitudinais – ou seja, relacionadas às atitudes e comportamentos das pessoas. “É muito difícil porque as pessoas não acreditam que podemos aprender e que, na escola, podemos ensinar e aprender juntos. É muito difícil entrar em uma escola hoje. Tenho uma equipe de 22 pessoas que está nas escolas todos os dias, conversando com diretoras, coordenadoras, professores, estudantes e familiares para trabalhar a questão da sensibilização e do direito”.

Gomes afirmou que a Gerência se encontra em processo de reorganização, com o retorno às atividades presenciais que segue a diminuição de casos de covid-19. Segundo a gestora, a rede municipal está equipando com ferramentas de tecnologia educacional e comunicação as unidades de ensino e salas de recursos, e aposta na formação de educadores para desenvolver o ensino inclusivo. “A primeira coisa que conseguimos organizar foi a ampliação do número de professoras e professores do atendimento educacional especializado. Neste momento, estamos fazendo a lotação de mais cem professoras e professores. Eles já são da rede municipal de ensino e todos têm pós-graduação em Educação Especial Inclusiva. Também garantimos, na Escola de Formação Professor Paulo Freire, uma formação mensal”.

A vereadora Cida Pedrosa (PCdoB), que chegou quando a audiência pública estava em andamento, fez uma saudação às participantes da audiência e deu o seu relato enquanto pessoa disléxica, mãe de um filho também disléxico. “É preciso ter uma legislação de apoio a pessoas neurodivergentes”, defendeu.

No final, a vereadora Liana Cirne entregou votos de aplausos às mães que participaram da audiência e afirmou que será feito um relato da audiência pública para ser distribuído com os participantes. “Também vamos fazer um inventário de todas as situações relatadas na audiência em que houve erro de encaminhamentos no atendimento das unidades de regulação”. Liana Cirne acrescentou que é importante avançar na política municipal de atendimento à pessoa autista e que os debates servirão para aperfeiçoar o projeto de lei de sua autoria que vai propor a criação do Estatuto Municipal da Neurodiversidade.

Em 07.04.2022.