Comunidades e ocupações ameaçadas de despejo são tema de audiência pública

O drama das comunidades e ocupações ameaçadas de despejo no Recife foram discutidos em uma audiência pública promovida pela Câmara do Recife nesta terça-feira (19). Requerido pelo vereador Ivan Moraes (PSOL), o debate abordou as consequências das remoções e as possíveis saídas para as famílias que, em meio à crise econômica, podem perder suas casas em uma cidade com um déficit habitacional que ultrapassa as 70 mil moradias. Estiveram presentes na discussão gestores da Prefeitura e membros de comunidades, de movimentos sociais e da Defensoria Pública de Pernambuco.

Em seu discurso de abertura, Ivan Moraes lembrou que os despejos foram suspensos no Brasil até o dia 30 de junho, em razão da pandemia de covid-19. Além disso, ele demarcou o problema em duas frentes, sendo a primeira delas as ameaças de remoções ocasionadas pelo próprio Poder Executivo municipal.

“Acho que ninguém da gestão pública tem o interesse direto de que pessoas percam suas casas. A gente tem recebido, no nosso mandato, diversas formas de despejo diferentes”, apontou. “Tem algumas comunidades, como a das Flores e Vila Esperança/Cabocó, que estão ameaçadas por intervenções, em tese de interesse público, porque são ações diretas da Prefeitura”.

A outra frente, que exigiria outros tipos de ações, são as ameaças de remoções provocadas por terceiros – sejam outros entes federados, seja o setor privado. “Em outros casos, como a comunidade da Linha, há ameaça de despejo por conta de processos sobre os quais a Prefeitura não tem ação direta – é uma ação federal. Mas entendemos que a Prefeitura pode participar, seja qualificando a área como de interesse público, seja dialogando. E tem algumas outras comunidade, como Portelinha e Vila da Torre, que são ameaçadas de despejo por processos privados, mas que acontecem em Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS). Elas já estariam protegidas. Mas, por contas de processos de titulação, acabam ficando vulneráveis quando aparece um ‘dono’”.

Contexto – Ainda no início da audiência, representantes de duas instituições foram convidadas a fazer apresentações sobre a problemática habitacional brasileira. A primeira delas foi a Campanha Despejo Zero, criada no início da pandemia de covid-19 e que hoje agrega mais de 175 entidades para atuar contra despejos e remoções forçadas.

De acordo com Raquel Ludemir, que falou pela Campanha, houve um aumento de 602% no número de famílias brasileiras ameaçadas de perder sua moradia desde o início da pandemia, em março de 2020. No mesmo período, houve um aumento de 333% de famílias despejadas. “Temos 500 mil pessoas ameaçadas de perder seu teto hoje no Brasil. E isso é só o que a gente consegue identificar, o que sabemos que é uma pequena parcela do todo. Além disso, foram mais de 110 mil pessoas que perderam a moradia somente nesse contexto de pandemia”, pontuou. “Esses números são devastadores porque estamos em um momento de desmonte total das políticas habitacionais do País. No ano passado, tivemos um corte de 98% dos recursos dessas políticas, um corte feito na antiga Faixa 1 do Minha Casa Minha Vida, em que está a população mais pobre”.

A segunda entidade convidada foi o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), representada na audiência por Antônio Celestino, que levantou dados sobre a problemática no contexto da pandemia em Pernambuco. De acordo com ele, 17.270 famílias estão ameaçadas de remoção no Estado. Enquanto isso, 40% da população do Grande Recife vive com R$ 104 mensais, R$ 51 a menos que no início da emergência sanitária. “É uma condição de vida impossível, em que 90% da população vive com renda per capita abaixo de R$ 831”.

Ao mesmo tempo, o Estado se posiciona entre os piores quando o quesito é a entrega de imóveis contratados pelo extinto Programa Minha Casa Minha Vida. Até 2019, apenas 67, 8% tinham sido entregues em Pernambuco, entre as dez piores marcas de todo o País. Enquanto isso, a Região Metropolitana acumula 58 casos de conflitos fundiários, dos quais 28 são localizados no Recife. “Esses dados abrem o contexto dos conflitos fundiários no Estado. O direito de propriedade assume as regras das decisões judiciais em sede de ações de reintegração de posse, abstraindo todo o quadro de segregação”.

Uma série de movimentos sociais e representantes de comunidades ameaçadas apresentaram suas demandas na audiência. Dentre os movimentos, foram ouvidos o Recife de Luta, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), o Movimento de Luta e Resistência pelo Teto (MLRT) e o Movimento de Luta Popular e Comunitário de Pernambuco (MLPC). Foram escutadas as comunidades da Linha, das Flores, Vila Esperança/Cabocó, Caranguejo Tabaiares, do Bode, Entra-a-Pulso, Planeta dos Macacos, Ocupação Leonardo Cisneiros e Ocupação 8M.

O ex-deputado federal e ex-vereador do Recife Paulo Rubem Santiago (Rede) também participou do debate. Ele citou informações que denotariam dificuldades da Prefeitura em avançar na questão da moradia. “Em 2019, não tinha pandemia. Para o Programa de Requalificação das Áreas de Baixa Renda, a Prefeitura colocou R$ 20 mil e não executou um centavo. Em 2018, na função Habitação – Implementação de Projetos Habitacionais, foram colocados R$ 195 milhões, com a autorização da Câmara. A Prefeitura não executou nem 1% desses recursos. Em 2017, foram R$ 109 milhões previstos pela Câmara Municipal no Orçamento para a implementação de projetos habitacionais. A Prefeitura não executou nem 4%. É muita incompetência”.

Desafios e alternativas – A secretária-executiva de Políticas Habitacionais do Recife, Norah Neves, recuperou dados sobre a política habitacional do País e no município desde 2005, quando foi criado o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SHNIS). Ela explicou, também, as diretrizes do Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHIS), que inclui aproveitamento de áreas subutilizadas, mas dotadas de infraestrutura, e parcerias com os demais entes federativos. Também foi feito um detalhamento das linhas de atuação da Prefeitura para a habitação, como a produção de lotes urbanizados, o auxílio moradia, a regularização fundiária e a locação social.

Além desses instrumentos, Neves afirmou o Executivo tem estudado novas ferramentas para viabilizar políticas para a população com renda entre um e dois salários mínimos, que não são mais atendidos por programas do Governo Federal. Um deles é o termo territorial coletivo, em que a propriedade é detida de forma comunitária, protegendo famílias de baixa renda da especulação e garantindo sua permanência nos territórios.

“A Prefeitura e a Secretaria de Habitação vêm atuando no sentido de buscar alternativas e soluções para os nossos problemas, que são grandes e não são de hoje”, afirmou. “E esses problemas estão piorando com a situação que estamos vivendo, de piora geral de acesso a políticas e a empregos. Vemos que tipos de alternativa o município pode buscar para enfrentar essas questões e minimizar conflitos”.

O presidente da Autarquia de Urbanização do Recife (URB), Luís Henrique Lira, respondeu a questionamentos e demandas da população sobre os casos em que há ameaça de remoção de famílias. Além disso, o gestor fez uma análise dos principais desafios da política habitacional do município

“É um problema estrutural. O direito à cidade não é como era há 50 anos atrás e também não será daqui a 50 anos da forma como é hoje. O que temos que fazer é garantir que a cidade se desenvolva da forma mais justa, e a URB tem uma tarefa nisso. Se a gente pudesse ter todo o orçamento da URB para escolher o que fazer, eu faria todo de habitacional. Mas a gente não pode agir dessa maneira. Tem rubricas, denominações”, argumentou. “E obras ensejam impactos. Canais, por exemplo, ensejam desapropriações. Muitas vezes, e Caranguejo Tabaiares é um caso desse, em que esbarramos em um problemas que precisam de três ações: a obra do canal, a urbanização da ZEIS e o habitacional. Ao longo do tempo, uma coisa fica implicada na outra”.

A Defensoria Pública foi representada na audiência pelo defensor Fernando Debli, do Núcleo de Habitação do órgão. Além de relatar a expansão do órgão no atendimento a pessoas que precisam de orientação jurídica em relação ao direito à moradia, ele tratou da necessidade de a Prefeitura instituir um corpo de assistentes técnicos que orientem quem precisa para que se evite futuras demolições de imóveis e remoções de famílias de áreas de risco. Outro ponto abordado foram a relação entre os valores oferecidos às famílias na remoção e o descumprimento do direito delas à regularização fundiária de seus imóveis.

“O Recife foi ocupado de forma irregular. Muitas áreas, inclusive áreas ditas nobres foram irregulares, sendo regularizadas com o tempo”, contextualizou. “No diálogo com os moradores e analisando os processos de desapropriação, verificamos que os valores não consideram a propriedade de fato. Como a área é irregular, as pessoas não têm o título e o valor das indenizações cai. As pessoas são duplamente vitimizadas: primeiro, porque não têm a regularização. Segundo, porque no processo de negociação com relação às desapropriações, os valores considerados não são o da titularidade do imóvel, apesar de existir o direito de ter isso”.

Durante a audiência, o vereador Ivan Moraes elencou alguns encaminhamentos que serão utilizados para acompanhar a resposta da Prefeitura aos problemas levantados no debate. Dentre eles, estão a criação de um grupo de trabalho para dialogar sobre despejos; caso não seja possível, a promoção reuniões com representantes de cada uma das comunidades afetadas. Outro encaminhamento solicitado é a implementação de soluções habitacionais, pela Prefeitura, para quem precisa ocupar imóveis no Recife.

Em 19.04.2022