Audiência pública põe em debate Lei do Silêncio e racismo cultural e religioso

Estabelecer limites técnicos aos ruídos urbanos para proteger o bem-estar e o sossego público – esse é o objetivo da lei estadual nº 12.789/2005, conhecida como Lei do Silêncio. No entanto, de acordo com participantes de uma audiência pública realizada na Câmara do Recife nesta quarta-feira (8), a legislação vem sendo utilizada para perseguir grupos religiosos de matriz africana, indígena e afro-indígena, bem como manifestações culturais como o maracatu. Promovida pela vereadora Liana Cirne (PT), a audiência pública reuniu os setores religioso, cultural e público para discutir o problema.

Criada em 2005, a lei estadual nº 12.789 sofreu uma alteração em 2010 para excluir das limitações os ruídos e sons produzidos por manifestações religiosas, bem como os sinos de igrejas e instrumentos litúrgicos utilizados nos cultos. Com isso, perderam o fundamento legal as denúncias e ações policiais baseadas na Lei do Silêncio que visam a interromper essas cerimônias.

O quadro apresentado por Liana Cirne ao abrir a audiência, no entanto, mostra uma realidade diferente. “Temos ouvido muitos relatos desde o início do nosso mandato, em fevereiro de 2021. Muitos terreiros nos relataram que não conseguiam celebrar um culto sem interrupção. A Polícia era chamada pela vizinhança, ainda que aquele terreiro produzisse menos ruído que, por exemplo, uma igreja evangélica”, afirmou a parlamentar.

Católica, Cirne disse nunca ter presenciado a utilização da Lei do Silêncio contra a Igreja. "Seria terrível se isso acontecesse. Nós nos sentiríamos muito humilhados e desrespeitados na nossa fé. O que queremos refletir aqui é a dimensão do racismo institucional que interrompe, sistematicamente, os cultos religiosos dos terreiros de matriz africana, indígena e afro-indígena, e não, na mesma proporção, de outras religiões”.

Além de Liana Cirne, que presidiu a audiência, participaram da discussão o mestre de maracatu rural Maciel Salu, a representante da Rede Mulheres de Terreiros, Vera Baroni, o promotor de Justiça Sérgio Gadelha Couto, as procuradoras de Justiça Helena Martins e Ivana Botelho, o major da Polícia Militar Eduardo Henrique Scanoni, e o representante da Secretária de Defesa Social, delegado Élder Tavares.

"Barulhentos" - O primeiro a falar foi o mestre rabequeiro Maciel Salu. Ele lembrou um caso que ocorreu na Zona da Mata, há nove anos, quando os representantes de terreiros e de maracatus foram proibidos de realizarem as sambadas. Era um caso de preconceito racial apoiado na Lei do Silêncio, segundo afirmou. Os manifestantes foram acusados de "barulhentos". Para o mestre rabequeiro, o que os reclamantes pretendiam era calar as manifestações culturais e religiosas.

“Foi um caso de censura, uma proibição das sambadas de maracatus rural com base na Lei do Pacto pela Vida e na Lei do Silêncio”. Maciel Salu disse que os juremeiros e maracatuzeiros foram obrigados, pela promotoria de Justiça, a parar com suas preparações para o Carnaval naquele ano, sob a alegação de que estavam produzindo muito barulho. “A sambada é a preparação dos maracatus nos terreiros. Passamos por isso e tivemos que parar nossas sambadas”.

A socióloga Vera Baroni, representante da Rede de Mulheres de Terreiros de Pernambuco, relatou casos de violência contra os terreiros de umbanda, candomblé e da Jurema Sagrada de Pernambuco, tendo a Lei do Silêncio como pano de fundo. Ela aproveitou para denunciar a violência contra o direito de crença e culto, no Brasil, e disse que de acordo com Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (Disque 100), o número de casos de violência aos terreiros cresce a cada ano.

O major Eduardo Henrique Scanoni, da Polícia Militar de Pernambuco (PMPE), que é membro do Grupo de Enfretamento às Intolerâncias, falou sobre a formação do povo brasileiro e de suas instituições. E disse que o racismo está na gênese das instituições, contrastando com o que prega a Constituição de 1988. “Nosso desafio é alterar o comportamento da sociedade que foi formada com base na violência do mais forte sobre o mais fraco”. Para ele, não há outra alternativa que não seja a educação. Ele acrescentou que desde 2009, a Polícia Militar tem um grupo de trabalho de combate ao racismo institucional e que desde 2010, a PMPE tem uma disciplina sobre racismo na formação de soldados e oficiais.

A promotora de Justiça, Helena Martins, falou sobre o funcionamento do Centro de Apoio aos Promotores de Justiça de Pernambuco (CAO-MPPE) de Defesa Social e Controle Externo da Atividade Policial, criado em abril e 2021. Através do CAO, segundo ela, o Ministério Público se coloca à disposição da sociedade. “Queremos que todos nos vejam como parceira, como alguém que chega junto e com rapidez”.

A procuradora de Justiça, Ivana Botelho, que também é coordenadora do Grupo de Trabalho Racismo do Ministério Público, afirmou que o racismo está entranhado na sociedade e que o argumento da perturbação do sossego é usado como face camuflada desse racismo. Ela acrescentou que, da mesma forma, o preconceito está impregnado nas entidades do sistema de Justiça, que passa pelas polícias, pelo Ministério Público e pela Justiça. “Apesar do preconceito estrutural, as pessoas das instituições precisam ser punidas individualmente pelas suas condutas em desacordo com a lei”.

Encaminhamentos - Titular da Delegacia de Desaparecidos e Proteção à Pessoa, Elder Tavares reconhece que o preconceito racial passa pela questão religiosa, muitas vezes disfarçado por outras reclamações como a perturbação do silêncio. Já o promotor do Meio Ambiente e Patrimônio Histórico-cultural do Ministério Público, Sérgio Gadelha Souto, fez um apanhado do que foi dito na audiência e observou que a sociedade está muito intolerante e que precisa buscar o equilíbrio.

A vereadora Liana Cirne propôs como encaminhamento da audiência pública manter o foco da discussão do preconceito racial na Lei do Silêncio. “Ela é utilizada com viés racista”, disse. Sugeriu, para debater o tema, a criação de um calendário de reuniões e de um grupo de trabalho interinstitucional. Esse grupo teria como objetivo consolidar as legislações que versam sobre o racismo, inclusive os projetos de lei que estão prestes a ser votados em segundo turno pela Câmara Municipal do Recife. Eles tratam do Estatuto da Liberdade Religiosa e da Lei de Assistência Religiosa. Uma nova audiência pública será realizada no futuro para analisar se houve avanços.

Clique aqui e assista a matéria do TV Câmara do Recife.

Em 08.02.2023